Quase 40% dos casos de tuberculose no Brasil são provenientes de transmissões iniciadas em presídios — principalmente os superlotados — que se espalharam para o restante da população, segundo pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). O estudo, realizado em parceria com instituições da Colômbia e do Peru, utilizou dados sobre encarceramento e incidência de tuberculose entre 1990 e 2019, com o objetivo de entender como as políticas do sistema prisional impactam a disseminação da doença na América Latina.
Publicada no último dia 14 na revista científica The Lancet Public Health, a pesquisa considerou seis países: Argentina, Brasil, Colômbia, El Salvador, México e Peru, que juntos concentram 80% da população carcerária e da carga de tuberculose na região. Entre esses países, 27,2% dos casos da doença registrados em 2019 foram associados a infecções originadas em presídios. No Brasil, essa taxa chegou a 36,9%, o que supera a média regional e deixa o País atrás apenas de El Salvador (58,1%).
“Nos presídios brasileiros, os casos de tuberculose representam 11,5% do total registrado no País. Por outro lado, quando observamos os casos que estão do lado de fora do sistema prisional, quase 40% estão relacionados a uma bactéria originada dentro desse sistema. Ou seja, o impacto é muito grande”, observa o infectologista Julio Croda, pesquisador da Fiocruz e um dos autores do trabalho.
Transmitida pelo ar, a tuberculose se espalha principalmente em ambientes com aglomeração. A doença afeta especialmente os pulmões, mas pode acometer outros órgãos e sistemas, como rins e sistema nervoso. Segundo o Ministério da Saúde, os sintomas mais frequentes incluem tosse com secreção, cansaço excessivo e emagrecimento acentuado. Em casos graves, ela pode causar complicações como a destruição do tecido pulmonar, levando à insuficiência respiratória.
Essa é a primeira vez que um estudo se propõe a investigar a relação entre a doença e o sistema prisional, levando em consideração características específicas da tuberculose, como a taxa de transmissão; dados epidemiológicos de longo prazo, incluindo o número de novos casos; e indicadores prisionais, como superlotação, entradas e saídas de detentos, contato entre presidiários e outras pessoas que circulam no ambiente prisional (como funcionários e visitantes), e o tempo médio de permanência nas unidades prisionais.
“Há aspectos que frequentemente não são levados em conta, como o fato de a tuberculose ser uma doença crônica, que pode se manifestar, em média, até sete anos após a infecção. Isso significa que um indivíduo pode apresentar sintomas mesmo após ser libertado”, explica o infectologista. Ele destaca que, ao considerar essas particularidades da doença e as dinâmicas do sistema carcerário, é possível projetar, por meio de cálculos matemáticos, quantos casos diagnosticados na população geral estão relacionados ao encarceramento.
“Por que esses casos estão associados à prisão? Porque a pessoa encarcerada, em algum momento, retorna à comunidade, entra em contato com familiares e funcionários do presídio, que, por sua vez, mantêm contato com outras pessoas, criando um ciclo de transmissão”, afirma Croda. “Em resumo, a modelagem da pesquisa utiliza dados gerados no interior das prisões e toda a dinâmica da transmissão que ocorre para além do encarceramento”, completa.
Superlotação nos presídios
Nos últimos 30 anos, a população em privação de liberdade quase quadruplicou na América Latina. No Brasil, especificamente, o salto foi de 739%, passando de 90 mil para 755.274 pessoas entre 1990 e 2019.
Enquanto isso — e não por acaso — o aumento nos casos de tuberculose caminhou em paralelo, tanto aqui quanto nos países vizinhos. Isso porque, conforme explica Croda, pessoas privadas de liberdade são ainda mais expostas à doença devido à aglomeração (principalmente nos presídios que ultrapassam a capacidade máxima), ventilação precária, desnutrição e acesso limitado a cuidados de saúde.
“Juntos, esses fatores contribuem para que as taxas de tuberculose sejam 28 vezes maiores entre pessoas privadas de liberdade do que na população em geral na região latinoamericana”, destaca o pesquisador. “Se nós temos uma estrutura onde cabem quatro pessoas em uma cela e colocam 20, estamos falando de uma estrutura que colabora para que a transmissão da tuberculose extrapole os limites da saúde pública, tanto dentro quanto fora dentro dos presídios”, alerta.
O estudo revela ainda que, em quase todos os países analisados, com exceção da Argentina e do México, o encarceramento é o principal fator de risco para tuberculose, sendo superior aos cinco fatores de risco já conhecidos e estabelecidos pela Organização Mundial da Saúde (OMS): desnutrição, HIV, alcoolismo, tabagismo e diabetes.
No Brasil, que contabilizou 85.523 casos de tuberculose em 2019 — o maior número entre os países da América Latina —, uma pessoa tem 37% de chance de contrair a doença após ser encarcerada. Em comparação, fatores de risco tradicionais apresentam percentuais bem menores: o HIV eleva o risco em 11%, o alcoolismo em 9%, o tabagismo em 7% e o diabetes em 4%.
“A partir do momento em que a pessoa é presa, ela já tem quase 40% de chance de desenvolver tuberculose, superando os fatores de risco tradicionais que norteiam a saúde pública. Isso revela um tipo de injustiça social em que, por estar preso, você já está condicionado a ter um diagnóstico de uma doença séria. E o pior: estando sob tutela do Estado”, destaca Croda.
Reestruturação do sistema prisional
A pesquisa também projetou um cenário fictício em que haveria intervenções ativas de desencarceramento. Por exemplo, uma redução de 50% nas taxas de entrada e permanência nos presídios poderia, em 2034, reduzir a incidência de tuberculose na população em cerca de 28,9% no Brasil, 16,4% no Peru, 13,7% na Colômbia, 10,3% na Argentina e 3% no México.
Para os pesquisadores, reduzir a disseminação da doença nos presídios requer uma abordagem que vá além de intervenções biomédicas tradicionais, como diagnóstico e tratamento. “Precisamos repensar o encarceramento em massa, focando em possíveis soluções. O monitoramento eletrônico, por exemplo, poderia ser utilizado em alguns casos como uma alternativa menos danosa do ponto de vista da superlotação e controle da tuberculose”, opina Croda.
O infectologista destaca que as taxas de encarceramento variam entre as regiões do Brasil. No Centro-Oste, Sudeste e Sul, o encarceramento em massa costuma ser mais alto quando comparado ao Norte e Nordeste. “Isso nos leva a pensar que as políticas prisionais diferem de um lugar para outro. O que será que acontece? Existe um olhar mais criterioso em relação ao crime cometido e suas particularidades nessas regiões onde não há tanta superlotação?”, questiona.
Ele também lembra que, há 10 anos, foi elaborado um guia para orientar a construção de presídios no Brasil, cujo objetivo é garantir ventilação adequada e minimizar impactos na saúde. “Mas esses presídios são projetados para atender o limite de pessoas, não para lidar com a superlotação. Ou seja, não resolve”, critica.
Para Croda, o problema também exige considerar questões sociais. Embora a pesquisa não apresente um recorte sobre o perfil das pessoas privadas de liberdade, ele lembra que 70% da população carcerária no Brasil é negra, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2023.
“O que vemos nas prisões são, em sua maioria, pessoas negras e pardas, de baixa renda e escolaridade, que muitas vezes se envolvem na criminalidade por falta de alternativas econômicas”, diz. “Isso significa que estamos lidando com um problema com cor e características definidas.”
Vale lembrar que existe vacina para a prevenção da tuberculose, a BCG. Contudo, ela é indicada apenas para crianças, com uma duração média de proteção de cerca de 5 anos. De acordo com Croda, a Fiocruz vem estudando o desenvolvimento de uma versão do imunizante para adultos, com a intenção de testá-la justamente na população privada de liberdade. “Ainda não temos um prazo estabelecido, mas temos expectativa de que ajude na proteção da população carcerária e, consequentemente, da população geral”, conclui.
Posicionamento
O Estadão solicitou um posicionamento da Secretaria Nacional de Políticas Penais, responsável por acompanhar e controlar a aplicação da Lei de Execução Penal e das diretrizes da Política Penitenciária Nacional. No entanto, o órgão não se manifestou até a publicação da reportagem.