José Ramiro Hipólito Guadamuz Chavarria poderia ser o garoto propaganda da blue zone da Península de Nicoya, na Costa Rica. Aos 101 anos, tem uma disposição de dar inveja: cavalga 12 horas por dia todos os dias, cuida do gado e da fazenda, visita os amigos pela cidade.
Mas o que realmente faz seus olhos brilharem é sua família.
Dom Ramiro, como é chamado, vive cercado por seus familiares. Viúvo, teve sete filhos e já perdeu as contas da quantidade de netos e bisnetos. O ritmo de sua casa é ditado pelo entra e sai constante de parentes. O centenário faz o que está ao seu alcance para ajudar seus descendentes: sua neta Melissa perdeu o marido num acidente de moto, com um filho pequeno e grávida do segundo. Dom Ramiro construiu uma pequena casa em sua propriedade para auxiliá-los mais diretamente. O resto da família também se mobilizou para ajudar a jovem.
Dom Ramiro mantém o papel de patriarca da família. As grandes decisões ainda passam por ele – responsabilidade que o idoso leva a sério. Numa ocasião em que um de seus filhos vendeu uma propriedade sem consultá-lo, Dom Ramiro caiu doente. “Em muitos lugares, o idoso é ignorado, mas na minha casa todos me respeitam. Continuo sendo o chefe da família. Quando meus familiares me encontram, sempre me cumprimentam e me abraçam”, conta.
Os fortes laços familiares têm um papel central na longevidade observada nas blue zones. Este foi o nome dado a cinco regiões do planeta onde pesquisadores observaram que as pessoas vivem mais do que a média e com saúde. Nesses locais, não é incomum encontrar centenários cuidando do jardim, cavalgando, cozinhando ou trabalhando. Buettner, em conjunto com pesquisadores, caracterizou como blue zones as seguintes localidades:
- Nicoya, na Costa Rica
- Loma Linda, nos Estados Unidos
- Okinawa, no Japão
- Icária, na Grécia
- Sardenha, na Itália
Visitei essas regiões em uma expedição de dois meses para buscar entender esse e outros pilares do envelhecimento saudável – além de cultivar bons relacionamentos, são tratados como pontos fundamentais seguir uma alimentação saudável, ser ativo e ter um propósito de vida. Essa é a última de uma série de três reportagens que explora essas questões.
Os laços familiares
Na maioria dos casos, os idosos vivem com seus filhos até o final da vida, não raro com várias gerações sob o mesmo teto. Esse arranjo permite que o idoso se sinta acolhido e cuidado pelos outros membros, mas também dá a ele a oportunidade de continuar se sentindo útil e pertencente, compartilhando sua experiência e participando do funcionamento da casa.
Dom Ramiro, portanto, sabe que pode contar com sua família para cuidar dele quando chegar a hora, ao mesmo tempo que sente que sua opinião ainda é relevante para aquele núcleo.
O médico Raffaelle Sestu, que acompanha os centenários da cidade de Arzana, na região central da Sardenha, constata o mesmo fenômeno entre seus pacientes. Ele conta da festa de aniversário de 101 anos de um deles. Além de familiares e amigos estava presente a equipe de uma televisão alemã, que gravava uma matéria sobre os centenários da cidade. “Havia quase 100 pessoas naquele encontro, mas quando Luigino disse ‘Sentem-se’, todos sentaram. Ele ainda estava à frente da situação”, recorda. Ele continua: “Nossos idosos sempre tiveram um papel fundamental dentro da família. Se a família tiver que tomar uma decisão importante, ela primeiro consultará aquele que já tem 100 anos de experiência. A autoestima trazida por essa valorização auxilia na saúde do idoso, principalmente a mental.”
A italiana Rosa Secci, de 97 anos, é um exemplo disso. A aparência frágil e o caminhar lento são compensados por uma mente afiadíssima e uma atitude extremamente positiva diante da vida. Casou-se com 31 anos – “já não era mais uma garotinha”, diz –, teve três filhas, seis netos e quatro bisnetos. A família é seu maior motivo de orgulho. “Nunca estou sozinha, estou sempre na companhia deles. Tenho uma vida belíssima e feliz porque todos eles me amam”, conta Rosa.
A idosa já sabe como vai celebrar seus 100 anos: em uma comemoração conjunta com Andrea, seu bisneto mais velho, que completará 18 anos na mesma época. A ideia partiu do próprio rapaz.
O círculo social
Mas e quando a família não está por perto? É o que muitos idosos enfrentam nos EUA, onde os filhos saem cedo de casa para cursar a universidade ou trabalhar, muitas vezes mudando-se para outras cidades ou estados.
Aqui entram as redes de amizade, outro aspecto identificado pelos pesquisadores como essencial para a longevidade nas zonas azuis. Em Loma Linda, na Califórnia, uma das áreas mais longevas do mundo, é a comunidade da igreja adventista que acaba fazendo as vezes de família, visitando residentes em instituições de longa permanência ou checando o bem-estar de idosos que moram sozinhos.
“O conceito de família é fortalecido em Loma Linda por causa da igreja. Às vezes a pessoa tem um contato mais íntimo com os membros da igreja do que com um familiar que mora do outro lado do país”, conta Hildemar dos Santos, diretor do programa de cuidados preventivos a Universidade de Loma Linda.
Esther van den Hoeven, de 98 anos, é moradora de uma instituição de longa permanência para idosos em Loma Linda. Tem riso fácil e embora use um andador, cuida sozinha de seu apartamento no complexo residencial. Conta, orgulhosa, que tem 27 membros em sua família. “Mas alguns eu não vejo há muito tempo. Não sei se eles vivem a vida que eu gostaria que vivessem. Tudo que posso fazer é orar por eles e ser gentil”, diz. Quem exerce o papel de sua família são os membros da igreja adventista da qual faz parte, que a visitam de tempos em tempos no residencial.
Os longevos de Okinawa também apontam para as amizades como um dos fatores que garantem uma longevidade extrema e de qualidade. É o caso do quarteto Ukiko Kina, de 89 anos, Tiyoko Asato, de 82 anos, Kinue Taira, de 88 anos, e Kazuko Asato, de 74 anos, residentes na vila de Kitanakagusuku, no distrito de Nakagami.
Quando nos encontramos, as idosas mal conseguiam conter a animação quando falavam da recente viagem à ilha de Hokkaido, no norte do país: as cerejeiras, o excesso de peso na bagagem, a ida ao correio para despachar os presentes para os netos. A viagem havia sido custeada com os fundos levantados em seu moai.
Os moais são um conceito japonês geralmente traduzido como “grupo de amigos”, mas que têm uma série de outras funções, sendo uma delas a financeira. Cada pessoa contribui periodicamente com um pequeno valor para o moai e alguém no grupo recebe o dinheiro em cada reunião, dependendo da necessidade.
“Isso gera confiança, porque você não dá seu dinheiro para qualquer um”, explica Donald Craig Willcox, professor de saúde pública e gerontologia da Okinawa International University e professor adjunto de medicina geriátrica na Universidade do Hawaí. “Tradicionalmente o aspecto financeiro era mais forte, mas hoje o aspecto da amizade é o que conta mais. E isso continua.”
O próprio Willcox, hoje com 62 anos, conta com um moai, formado por amigos que, como ele, são apaixonados pelo mar. “Um tem um barco, outro faz redes, outro gosta de pescar, outro conserta barcos. Nós geralmente nos encontramos uma vez por mês. Se você estiver com problemas financeiros, seu moai o ajudará. Se estiver no hospital, todos irão visitá-lo. Se estiver com problemas no casamento, você poderá desabafar”, diz.
Como ele, seu colega Makoto Suzuki, principal pesquisador do Okinawa Centenarian Study, o estudo mais antigo dedicado à longevidade na ilha, também se apoia num moai para enfrentar a perda recente da esposa. Aos 90 anos, ainda atuando como cardiologista e pesquisador, ele reúne seus amigos, das mais variadas idades, para falar sobre envelhecimento, sua área de expertise, e planejar viagens. “Amigos são extremamente importantes”, diz Suzuki. “A solidão e isolamento têm uma grande influência na saúde. Para muitas pessoas, o moai traz um propósito à vida.”
O papel da comunidade e da rede de apoio já eram conceitos familiares para Thea Parikos, segunda geração de gregos nascida em Detroit, no estado de Michigan. Ela cresceu numa comunidade formada por imigrantes gregos, muitos deles de Icária, e a solidariedade e companheirismo eram uma constante. Mas só quando se mudou definitivamente para a ilha, em busca de uma vida mais tranquila e com mais significado, entendeu a importância da vida em comunidade para a longevidade.
“Você pode levar uma vida muito saudável, mas, se estiver solitário, não estará bem. Aqui há companhia, você está sempre conversando com alguém. Não dá para ser solitário aqui. As pessoas não vão deixar você se isolar. Elas vão procurá-lo e cuidar de você. Isso faz uma grande diferença”, afirma.
Isso se aplica tanto a idosos quanto a jovens. Thea esclarece que o conceito de intervalo de gerações não existe em Icária – há até um ditado na ilha que diz: “Se você vai dar uma festa e não tem nenhum amigo idoso, compre um. Nenhuma festa é boa sem que haja idosos nela”. Ela conta de uma festa no último inverno em que havia sete mulheres com idade entre 40 e 85 anos ao redor da mesa. “Estávamos todas juntas. Não ligamos para a idade. Os idosos são parte da comunidade, são parte da vida”, conta.
Mesmo a ideia de lugares exclusivos para idosos, como instituições de longa permanência ou centros-dia, é pouco difundida em Icária. Thea diz que os idosos teriam vergonha de frequentar um centro-dia, porque se sentiriam segregados. As ILPI, por sua vez, são a última opção. Caso contrário, eles moram em suas próprias casas ou com algum filho. Se morarem sozinhos, recebem cuidados de outras pessoas da vizinhança. “Temos um sistema maravilhoso de redes comunitárias para nossos idosos”, diz.
Há quem pense que os idosos residentes nas blue zones sejam completamente imunes aos efeitos do envelhecimento. Não é o caso. A geriatra Isabel Barrientos-Calvo, coordenadora da Unidade de Pesquisa do Hospital Nacional de Geriatria e Gerontologia em San José, conta que, numa pesquisa que conduziu com 43 centenários em 2016 na Península de Nicoya, observou que a população tinha alta prevalência de desnutrição e hipertensão, com dependência para atividades básicas da vida diária, mas uma baixa prevalência para diabetes, depressão, isquemia cardíaca e polifarmácia. Havia também um certo declínio cognitivo.
No entanto, mesmo com as questões trazidas pelo envelhecimento, 30 dos 32 idosos com quem foi possível conversar diretamente responderam que estavam satisfeitos com a própria vida. A satisfação com a vida passava, entre outros fatores, por se sentirem amados e queridos, já que a maioria vivia com a família. “Um estudo de Harvard que já tem mais de 70 anos de seguimento também apoia esta hipótese: de que o que faz as pessoas felizes à medida que envelhecem é ter família e ter laços de amizade na comunidade.”