Que a China censura a produção cultural do país, é sabido desde 1949, quando os comunistas, vencedores da guerra civil, fundaram a República Popular da China. Além disso, já se tornou folclore a forma como filmes, séries e livros do Ocidente são censurados ou editados para não desagradarem o regime de Xi Jinping antes de chegarem ao público chinês.
Uma novidade é que a censura de Pequim agora está chegando a
países do Ocidente. Um caso bizarro ocorreu recentemente no Hugo Awards, que
premia anualmente as melhores obras literárias de ficção científica ou fantasia
(romances, roteiros de filmes e séries, quadrinhos, entre outras) que fazem a
alegria do público nerd. Os votantes são membros da Sociedade Mundial de Ficção
Científica, com sede na Califórnia.
A premiação de 2023 ocorreu na cidade chinesa de Chengdu em
outubro do ano passado, na convenção internacional de ficção científica
Worldcon, realizada a cada ano numa cidade diferente.
Normalmente, a organização divulga no mesmo dia da premiação
ou poucos dias depois os números de votos que os trabalhos receberam em cada categoria.
Porém, dessa vez, tais estatísticas foram divulgadas apenas em janeiro.
Foi aí que veio a surpresa. Várias obras apareceram com votos suficientes para serem finalistas da premiação, como um episódio da série de TV “Sandman”, de Neil Gaiman, mas foram desqualificadas. Um asterisco na lista indicou que tais obras seriam “inelegíveis”.
A suspeita era de que, pelo fato dos prêmios serem entregues
na China, houve censura a artistas que criticaram o regime comunista de Pequim
em algum momento ou que são chineses que deixaram o país para morar no Ocidente
– caso da escritora R.F. Kuang.
No Instagram, Kuang lembrou que seu livro “Babel” foi
finalista dos prêmios Nebula e Locus, nos quais saiu vencedor, mas não foi
indicado ao Hugo.
“Presumo que isso seja uma questão de indesejabilidade e não
de inelegibilidade. Excluir trabalhos ‘indesejáveis’ não é apenas constrangedor
para todas as partes envolvidas, torna todo o processo e organização
ilegítimos”, disparou.
A hipótese de censura foi reforçada por um vazamento de
e-mails ocorrido em fevereiro. Em uma das mensagens divulgadas, Dave McCarty,
um dos diretores do Hugo Awards, escreveu: “Não é necessário ler tudo [todas as
obras], mas se o trabalho se concentrar na China, Taiwan, Tibete ou outros assuntos
que possam ser um problema na China […], isso precisa ser destacado para que
possamos determinar se é seguro colocar [a obra] em votação [ou] se a lei
exigirá que tomemos uma decisão administrativa sobre isso”.
Devido ao escândalo, McCarty e Kevin Standlee, presidente do
conselho de administração do Hugo Awards, pediram demissão, assim como a
administradora geral do prêmio, Kat Jones.
Em comunicado, Esther MacCallum-Stewart, presidente da Worldcon
de 2024, que será realizada em agosto em Glasgow, pediu desculpas pelos danos
causados aos “indicados, finalistas e a comunidade” do prêmio de 2023, mas
disse que não sabia mais detalhes dos critérios da premiação em Chengdu além do
que já é “de conhecimento público”.
Ela informou que, para garantir transparência no Hugo Awards
deste ano, quando a lista de obras elegíveis for publicada, o que deve ocorrer entre
o final de março e o início de abril, também serão divulgados os motivos para
desqualificações de trabalhos.
MacCallum-Stewart também relatou que os resultados completos da votação serão publicados imediatamente após a cerimônia de premiação, em 11 de agosto. Resta saber se os danos à imagem do Hugo Awards causados pelo escândalo de 2023 foram fortes o suficiente a ponto de o público nerd simplesmente ter deixado de se interessar pelo prêmio.