Outro caso destacado é o de uma adolescente de 16 anos, conhecida por suas danças no TikTok e com mais de 7 milhões de seguidores no Instagram. Na descrição do perfil, ela se apresenta como “embaixadora” de uma plataforma de apostas. Nas publicações, promove ativamente os jogos de azar e já gravou vídeos incentivando seus seguidores a participarem – muitos deles são crianças e adolescentes. Em um dos vídeos, aparece jogando um jogo similar ao Tigrinho e afirma: “Só não consegue ganhar dinheiro quem não quer.”
Na visão de Rodrigo Nejm, doutor em psicologia social e especialista em educação digital no Instituto Alana, a estratégia das bets e dos cassinos online para alcançar o público mais jovem está estampada no próprio design das plataformas, descrito por ele como manipulador. “Existe toda uma arquitetura que envolve desenhos, cores e notificações dizendo que seus amigos também estão jogando, o que são elementos atrativos para os mais novos. Fora que te leva a acreditar que você vai ganhar, quando é muito mais provável que você perca. Tudo isso é cruel, porque explora vulnerabilidades do sujeito em desenvolvimento”, destaca Nejm.
Vale destacar que os anúncios das bets e dos caça-níqueis online estão em ônibus, metrôs, elevadores de consultórios médicos e até mesmo nos conteúdos produzidos por times de futebol, atletas e celebridades. Agora, quando influenciadores mirins entram no jogo da publicidade, incentivando outras crianças a apostarem, a combinação de fatores se torna ‘bastante explosiva’, na percepção do especialista.
Da ‘dieta digital’ aos tratamentos
Para Nejm, o mais importante é focar na prevenção. Ele recomenda que os pais fiquem atentos à rotina digital dos filhos, da mesma forma que monitoram a alimentação. “É essencial observar a ‘dieta digital’ das crianças, acompanhando o que consomem e com quem interagem. Isso ajuda a evitar o acesso a conteúdos prejudiciais e proibidos para menores”, orienta.
O especialista lembra que algumas ferramentas podem auxiliar nesse controle, como o bloqueio de aplicativos. “Hoje, é possível configurar dispositivos para limitar o acesso a certas plataformas, mas isso não é infalível”, pondera. Nesse ponto, o bom e velho diálogo, assim como a construção de uma relação de confiança, acaba sendo o melhor caminho. “Se decidir dar um celular, o que não é indicado para algumas idades, é essencial ter uma conversa leve e impor limites claros, explicando que se trata de uma forma de cuidado e expressão de afeto”.
Se os pais suspeitarem de uma dependência, o acompanhamento psicológico deve ser considerado. “Assim como em outros tipos de vício, o transtorno do jogo não desaparece completamente. O adulto ou criança permanece vulnerável, exigindo um cuidado e atenção contínuos por toda a vida”, informa Nicole.
Elizabeth acrescenta que o tratamento medicamentoso pode ser útil para lidar com comorbidades associadas, como depressão, ansiedade ou TDAH, que podem surgir antes ou depois do contato com os jogos. Em situações assim, o encaminhamento ao psiquiatra é necessário para definir a melhor abordagem. “No TDAH, as pessoas tendem a ser mais impulsivas, tornando-as mais suscetíveis ao vício ou a recaídas. Nesse caso, a medicação pode ser um suporte significativo”, exemplifica.
A psicóloga chama a atenção para a importância de a família se envolver no processo, se possível por meio da terapia familiar. A participação de pais e outros membros fortalece o tratamento e ajuda na compreensão do transtorno de jogo como um problema de saúde. Segundo Elizabeth, isso é especialmente relevante para crianças e adolescentes, considerados grupos mais sensíveis.
A terapia familiar é especialmente bem-vinda nos casos onde a cultura do jogo de azar está dentro de casa. De acordo com a psicóloga, há inúmeros casos de pacientes que iniciam o tratamento e, mais tarde, revelam que pai, mãe, irmão e outros familiares também têm o costume de realizar as apostas. Às vezes, a conta utilizada pelos menores na plataforma de apostas foi criada por um adulto da família.
Falta investimento na saúde mental
Enquanto o transtorno do jogo é cada vez mais incidente entre os jovens, Nejm observa que não houve um aumento significativo no investimento nas políticas públicas relacionadas à saúde mental. Faltam programas ou linhas de cuidado específicas para dependência em apostas, principalmente na Atenção Primária à Saúde (APS). Esse cenário, segundo o especialista, impacta especialmente as famílias com menor poder aquisitivo.
“O dinheiro perdido em apostas muitas vezes é aquele que deveria ser destinado à alimentação e às despesas básicas. Além disso, há crianças que podem desenvolver dependência ao serem atraídas pela ilusão de um ‘lucro fácil’ e pela promessa de uma mudança de vida”, explica o especialista, que alerta para a necessidade de se reconhecer o problema como uma questão de saúde pública.
Procurado pelo Estadão, o Ministério da Saúde admitiu que não possui dados sobre o vício da população brasileira em jogos de azar. A pasta afirmou que, desde o início de 2023, tem ampliado a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) para melhorar o atendimento de pessoas com problemas de saúde mental, mas não respondeu se há ações específicas voltadas ao transtorno do jogo. Vale ressaltar que a pasta ainda não fez campanhas ou publicações relacionadas à conscientização sobre o problema em suas redes.
À reportagem, o órgão também afirmou que, por intermédio do Ministério da Fazenda ― responsável pela regulamentação das bets ― , participa da articulação para a constituição de um Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) para atuar na prevenção e no tratamento do vício em apostas esportivas. A construção do GTI foi iniciada há um ano, mas ainda não saiu do papel, apesar dos reiterados alertas de profissionais da área da saúde, que veem a dependência alcançar brasileiros cada vez mais jovens. Procurada, a Fazenda afirmou que o grupo “está em processo de construção e deve ser publicado por meio de portaria interministerial”, sem especificar um prazo para publicação.
A pasta chefiada pelo ministro Fernando Haddad aproveitou para se posicionar sobre a utilização de plataformas de jogos de apostas por crianças e adolescentes. “Nossa posição é clara: tal utilização é proibida por lei e deve ser coibida por todos os agentes públicos responsáveis, bem como respeitada por todos os agentes diretos e indiretos do setor, inclusive com a aplicação das devidas penalidades, no caso de descumprimento”, escreveu, em nota.