Em meio às inundações que assolam o Rio Grande do Sul desde o final de abril, a Secretaria de Estado da Saúde (SES-RS) divulgou nesta quinta-feira, 23, a confirmação de 54 casos de leptospirose. A doença, geralmente transmitida por águas contaminadas pela urina de animais infectados, especialmente ratos, apresentou um aumento de 86,2% em menos de 24 horas. Até o dia anterior, 22, a SES havia registrado 29 casos da doença.
Além dos casos confirmados, houve registro de 4 óbitos. Com relação às suspeitas, até ontem, 23, foram contabilizadas 1.140 notificações. Já na semana epidemiológica 18, que compreende o período de 28 de abril a 4 de maio, coincidindo com o início das inundações no Estado gaúcho, apenas 23 casos estavam sob análise. Ou seja, trata-se de um aumento de 2491% nos casos suspeitos.
É relevante ressaltar que, mesmo antes das chuvas recentes no RS, a leptospirose já era considerada endêmica na região, ou seja, uma presença constante. Em 2023, foram registrados 477 casos, resultando em 25 óbitos.
Segundo o infectologista Alessandro Pasqualotto, presidente da Sociedade Gaúcha de Infectologia, o clima no Estado é de apreensão. Ele afirma que, apesar do rápido aumento de casos confirmados de leptospirose, o número ainda é baixo considerando as condições enfrentadas pelo RS e a quantidade de pessoas que, inevitavelmente, tiveram contato com águas possivelmente contaminadas. Pasqualotto sugere que esse número abaixo do esperado se deve possivelmente à subnotificação dos casos, indicando que o total real de infecções deve ser maior do que o registrado.
“A notificação é um ato muito passivo. Isso porque é necessário que o médico notifique a doença, mas certamente há muitas pessoas com sintomas compatíveis com leptospirose, incluindo febre e dor muscular, que não estão procurando ajuda médica ou não estão sendo notificadas, em um contexto onde o diagnóstico não está sendo majoritariamente realizado. Os pacientes estão recebendo tratamento com base clínica e epidemiológica, então certamente deve haver subnotificação”, afirma Pasqualotto, que também é chefe do Serviço de Infectologia da Santa Casa de Porto Alegre.
Com base nesse cenário, o especialista acredita que a doença tende a se manifestar de forma ainda mais intensa com o passar do tempo, dado que o período de incubação da leptospirose pode variar de dois a 30 dias após a infecção.
Outro ponto é que muitas pessoas que entraram (e continuam entrando) em contato com as águas das enchentes não estão tomando as devidas medidas de precaução, como proteger a pele, especialmente aquelas com lesões. “Isso, no entanto, acaba não sendo possível em algumas circunstâncias. Existem casos em que esse tipo de proteção, infelizmente, se torna uma preocupação secundária”, diz o especialista.
Outras doenças
Além da leptospirose, há outras preocupações em termos de saúde em virtude de tragédias climáticas. Em nota técnica divulgada recentemente, 26 doenças foram mencionadas pela Sociedade Brasileira de Infectologia e pela Sociedade Gaúcha de Infectologia. Entre elas, estão a febre amarela, a difteria, a raiva, o tétano e a hepatite A. De acordo com a SES, até a tarde de ontem, um caso de tétano havia sido confirmado, além de 83 casos de raiva e 72 acidentes com animais peçonhentos.
“Há uma grande preocupação, especialmente com os socorristas e as pessoas resgatadas, pois muitas delas podem não ter sido vacinadas a tempo para interromper a transmissão de doenças comuns em situações como esta, como é o caso da raiva. Muitas pessoas foram mordidas durante os resgates, então devemos ficar atentos a essa doença nos próximos tempos. A orientação atual é que os animais passem por um período de observação, mas muitos estão sendo liberados antes do previsto”, alerta o especialista.
Uso de antibióticos para população de risco é principal recomendação
Conforme ressaltado pelo especialista, no contexto específico da leptospirose, uma das principais estratégias recomendadas para reduzir potenciais casos da doença é a administração de antibióticos às pessoas em situações de alto risco, como aquelas que foram expostas às águas das enchentes por períodos prolongados, especialmente socorristas e indivíduos envolvidos em atividades de resgate.
Embora o uso desses antibióticos não faça parte da prática padrão, a Sociedade Brasileira de Infectologia afirma que eles podem ser eficazes como medida preventiva para interromper a transmissão da doença, podendo ser aplicados mesmo em situações onde não haja sintomas evidentes, mas apenas uma suspeita de exposição.
Nesse contexto, tanto a SBI quanto a Sociedade Gaúcha de Infectologia, por meio de uma nota técnica, reforçam que a recomendação principal é a administração de uma dose única de doxiciclina para adultos em situações de alto risco após exposição.
Para crianças, a dose deve ser calculada de acordo com o peso corporal, com uma dose máxima estabelecida. Como alternativa, a azitromicina também pode ser utilizada nas mesmas condições. No entanto, é crucial destacar que tais recomendações devem ser sempre seguidas com orientação médica, pois, em alguns casos, como de gestantes e lactantes, esses medicamentos não devem ser usados como medida preventiva.
De acordo com Pasqualotto, o Estado tem, em colaboração com o Governo Federal, concentrado esforços na gestão dos estoques, além de estar aproveitando as doações recebidas, para garantir que os medicamentos estejam disponíveis para aqueles que realmente precisam. Contudo, ele lamenta que, em meio ao cenário vivenciado pelo RS, é possível que a estruturação e administração das estratégias para a saúde pública não tenham sido realizadas a tempo de contemplar algumas pessoas.
“É muito lamentável que possamos ter perdido o momento oportuno para administrar antibióticos em larga escala, especialmente entre os envolvidos em atividades de socorro desde o início. No entanto, nós estamos vendo muito empenho para que essa dificuldade inicial imposta pelas circunstâncias seja superada”, declarou.
Apesar dos antibióticos serem um caminho recomendado, é importante ressaltar que essa medida deve ser restrita às pessoas mais vulneráveis. Além disso, não deve ser encarada como uma “medida salvadora”, mas, sim, como um possível meio de minimizar os riscos.
Para as pessoas que ainda terão contato com a água, como aquelas que precisarão limpar suas casas, o especialista enfatiza que o uso dessa estratégia não é a mais importante. “Em vez disso, é necessário enfatizar a proteção física, evitando o contato com água contaminada, usando chinelos ou até mesmo botas de proteção, se for possível. Não apenas a água, mas a lama também pode conter a bactéria causadora da leptospirose, especialmente para aqueles com feridas na pele”, ressalta Pasqualotto.