Pode soar estranho testar um componente de uma droga para lidar com a dependência química (ou transtorno por uso de substâncias, como dizem os médicos). Mas é exatamente isso que pesquisadores vêm fazendo especificamente com o canabidiol (CBD), uma molécula não psicoativa da maconha.
Veja: ao contrário do tetrahidrocanabinol (THC), o CBD não dá o famoso barato. Então, isoladamente, o risco de gerar dependência é menor (e cabe destacar que, entre as drogas, incluindo o álcool, a maconha está entre as que menos provocam dependência física).
No mais, isoladamente, o CBD não é inalado. “Quando fumada ou inalada, a maconha pode gerar malefícios pela própria combustão dos elementos tóxicos”, frisa o médico ortopedista Jimmy Fardin, coordenador do curso de prescrição de cannabis medicinal do Grupo CONAES Brasil.
Então vamos entender melhor essa história.
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Caminhos do vício
Quando pensamos na neuroquímica do cérebro relacionada ao consumo de droga, há um circuito relevante chamado sistema de recompensa. É uma forma de as pessoas persistirem em ações consideradas importantes. Ele é ativado todas as vezes que nos alimentamos, por exemplo, porque é essencial gostar de comer para não morrer de fome.
“O problema é que a droga vai ativar esse sistema de uma maneira intensa, e alterar o funcionamento desse circuito”, pontua a biomédica. Aí o indivíduo precisa consumir doses cada vez maiores para sentir prazer, e sofre demais quando deixa a droga.
A psicoterapia costuma protagonizar o tratamento dessas pessoas, porém diferentes medicamentos podem ser usados para interferir nesse sistema de recompensa. “A naltrexona, por exemplo, é indicada para a dependência de álcool por reduzir o seu efeito prazeroso”, destaca Lidia.
Mas… e o canabidiol?
Arma contra o crack
Cientistas da Universidade de Brasília (UnB) desenvolvem um estudo pioneiro com CBD como tratamento para pessoas com dependência de crack.
“A ideia é que ele atue na redução do consumo por diminuir o desejo pelo uso, aumentar da sensação de bem-estar e reduzir os efeitos da própria droga, como a falta de apetite e a insônia”, afirma a terapeuta ocupacional Andrea Gallassi, coordenadora do Centro de Referência sobre Drogas e Vulnerabilidades Associadas da UnB.
Na primeira etapa da pesquisa, os especialistas avaliaram um conjunto de fatores, como a segurança do medicamento, a possibilidade de reações adversas e consequências na saúde mental. Além, claro, dos eventuais impactos positivos na frequência e compulsão pelo uso de crack.
Para isso, contaram com a participação de mais de 70 pessoas dependentes, que foram divididas em dois grupos. Enquanto metade recebeu canabidiol, a outra foi tratada com fármacos convencionais para dependência (fluoxetina, ácido valproico e clonazepam).
Os participantes deveriam comparecer uma vez por semana, durante dois meses e meio, para receber o kit de medicação, responder aos questionários sobre uso de crack e de outras drogas, passar por uma intervenção terapêutica, consultar-se com médicos e fazer o teste toxicológico de urina, que foi analisado pelo Instituto de Criminalística da Polícia Civil do Distrito Federal.
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Ao fim do estudo, o CBD se mostrou seguro e tolerável. Ele, por exemplo, apresentou menos eventos adversos em comparação com o grupo que usou aqueles medicamentos convencionais. Com relação à compulsão por crack, a chamada fissura, os resultados foram semelhantes entre ambas as turmas – o que sinalizaria uma capacidade do CBD semelhante à das outras terapias utilizadas no estudo.
“O grupo do CBD teve um desempenho melhor na redução do uso de crack, na baixa ingestão de alimentos devido ao uso da droga e na melhora da autoavaliação dos participantes sobre seu estado de saúde”, explica a especialista.
Os resultados foram publicados no International Journal of Mental Health and Addiction.
“Como conseguimos demonstrar efeitos terapêuticos promissores, nossa próxima meta é ampliar a amostra de participantes – entre 100 e 200. Caso os resultados positivos se mantenham ou até melhorem, partiremos para uma fase de base populacional, com milhares de participantes de todo o país”, destaca a terapeuta.
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Feitiço contra o feiticeiro
Pra começo de conversa, a ideia de usar o composto de uma droga para enfrentar a dependência por essa mesma droga não é nova. A metadona, para citar um exemplo, é um opioide comumente indicado para reduzir as crises de abstinência provocadas por… opioides.
Voltando ao CBD, quem vem testando seu uso contra o abuso de maconha são pesquisadores na Universidade de Bath, na Inglaterra.
“O canabidiol tem uma ampla gama de ações dentro e fora do sistema endocanabinoide, um circuito de sinalização biológica encontrado em todos os mamíferos. Isso significa que existem muitos mecanismos de ação potenciais. Um é aumentar os níveis de endocanabinoides, os canabinoides que ocorrem naturalmente, para restaurar as alterações causadas pelo uso intenso de maconha”, explica Tom Freeman, diretor do Grupo de Dependência e Saúde Mental da instituição.
Para o ensaio clínico que ele conduziu, foram recrutados 82 voluntários com diagnóstico de transtorno por consumo de cannabis. Além disso, eles buscavam uma tentativa de interromper o uso.
Os pesquisadores avaliaram três doses diferentes de canabidiol: de 200, 400 e 800 miligramas (mg).
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Na primeira fase, 48 voluntários foram selecionados para receber placebo, uma substância sem qualquer efeito ao organismo, ou CBD nas três dosagens diferentes. Identificada como ineficaz, a dose mais baixa foi retirada dos testes.
Em um segundo momento, os estudiosos incluíram mais 34 participantes para tomar placebo ou as duas outras dosagens de canabidiol. Os efeitos do CBD no consumo de cannabis foram analisados durante um período de tratamento de quatro semanas, com até seis meses de acompanhamento.
Publicados no periódico científico The Lancet Psychiatry, os resultados apontaram evidências consistentes de que, nessas dosagens mais elevadas, o CBD foram mais eficazes do que o placebo na redução do consumo de maconha. De acordo com o estudo, os participantes tratados com CBD apresentaram níveis mais baixos de cannabis na urina e um maior número de dias de abstinência.
No que diz respeito à segurança, o medicamento se mostrou tolerável em todas as doses, sem aumento dos efeitos colaterais em comparação ao placebo. Pelo menos 94% dos voluntários completaram o tratamento.
“Atualmente, não existem medicamentos para o transtorno por uso de cannabis. O canabidiol é uma das várias abordagens promissoras em investigação, mas são necessários ensaios maiores para avaliar o seu potencial antes de ser recomendado na prática clínica”, afirma Freeman.
O professor destacou que recebeu um financiamento para testar a segurança e eficácia do canabidiol para o tratamento do transtorno por uso de cannabis em um grande ensaio multicêntrico de fase 3 na Austrália, junto a colegas da Universidade de Sydney, na Austrália.
Batalha inicial contra a cocaína
Um estudo da Universidade de São Paulo (USP) investigou o potencial benéfico do canabidiol para o tratamento do vício em cocaína. O ensaio pré-clinico, envolvendo animais, foi conduzido pela biomédica Lidia Wiazowski Spelta, durante o doutorado no Departamento de Análises Clínicas e Toxicológicas da Faculdade de Ciências Farmacêuticas.
Em laboratório, os camundongos foram induzidos a uma necessidade da cocaína semelhante à dependência experimentada por humanos. “Observamos um grande aumento do metabolismo cerebral por causa da presença da droga”, pontua Lidia.
Os pesquisadores então administraram CBD nos animais, que foram expostos novamente à cocaína. O objetivo era avaliar os possíveis efeitos da substância sobre a dependência.
“Após o tratamento com canabidiol, os animais não tiveram o mesmo aumento metabólico observado anteriormente. Podemos concluir que o CBD provocou alguma alteração no cérebro dos camundongos”, destaca a pesquisadora. “Mas não foi possível dizer se eles tiveram queda de ansiedade ou na fissura pela cocaína, porque isso não foi avaliado”, completa.
De alguma maneira, especula-se que o canabidiol apresente algum efeito protetor para o sistema nervoso lesionado pelo uso da cocaína. No entanto, estudos complementares são necessários para aprofundar os mecanismos envolvidos.
Ou seja, até agora não há como cravar que esse composto da maconha traz benefícios para quem deseja abandonar alguma droga. Mas os resultados indicam que a ciência pode seguir seus passos nesse sentido – sem ligar para preconceitos ou ideias falsas.