A operação brasileira da rede de supermercados Dia entrou nesta quinta-feira com um pedido de recuperação judicial no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) por conta de uma dívida total de R$ 1,1 bilhão — deste montante, R$ 268 milhões são passivos com bancos. Fornecedores são os principais credores do grupo.
A piora recente de uma crise que se estende há anos — foram quatro CEOs no país em cinco anos — e a dificuldade de renegociação de débitos aumentou o risco de um pedido de falência pelos credores, obrigando a rede a buscar proteção judicial.
Em entrevista ao Valor, o novo presidente da companhia, Sébastien Durchon, disse que uma forte queda nas vendas, especialmente após 2022, somado a um cenário de pressão das taxas de juros sobre os passivos, tem feito a rede consumir cerca de R$ 1 milhão de caixa diariamente.
Outras soluções foram analisadas até semanas atrás, como a venda do negócio a fundos de investimento, como antecipou o Valor, mas não houve avanços.
“É insustentável, não temos outra saída, a não ser a proteção judicial. Precisamos de tempo para reconstruir a companhia, para voltar a crescer”, diz ele, que está há três semanas no cargo, e foi contratado para liderar esse processo.
“Eu não entrei aqui para fechar a empresa”, afirma. “Daremos dois passos atrás para dar dois passos lá na frente quando sairmos disso. Não é uma atitude fácil, mas temos que fazer um ajuste mais corajoso, que já começou com o anúncio fechamento de parte das lojas dias atrás”.
A Alvarez & Marsal está atuando como consultora financeira da rede. O escritório Galdino & Coelho, Pimenta, Takemi, Ayoub Advogados está na parte jurídica.
Demissões e estrutura menor
Do total de 587 unidades existentes no começo do ano, foi comunicado, na semana passada, o encerramento de 343, restando 244 lojas. Desta forma, o Dia passa a operar apenas em São Paulo, a praça mais rentável do país. Mas a região também pode ter fechamentos pontuais, se necessário.
As 343 unidades ainda estão em processo de fechamento, em liquidação de estoques. Entre os 244 pontos restantes, 123 são franquias, e 121 são unidades próprias da empresa.
São 5,5 mil funcionários diretos do Dia no país hoje, e a empresa manterá apenas dois mil empregados após a atual reestruturação. Mais dois mil são empregados indiretos, e devem ser mantidos.
Além disso, atualmente são quatro centros de distribuição, em Belo Horizonte, Americana (SP), Mauá (SP) e Osasco (SP). Os três primeiros devem ser fechados, restando apenas o de Osasco.
Na documentação à vara empresarial, para justificar a necessidade de proteção judicial, a cadeia cita ainda a forte crise que afetou o varejo após a pandemia, além da escalada da Selic. Apesar de ser uma subsidiária do grupo espanhol, toda a dívida da empresa é local — o principal banco credor é o Santander. Ainda são credores o Daycoval e o Banco do Brasil.
A operação da varejista passou a dar sinais de problemas de cinco a seis anos para cá, mostram balanços do grupo.
O passado de resultados recordes e crescimento acelerado, com um modelo invejado de eficiência operacional traduzido em preços baixos, o chamado “supermercado de descontos”, foi ficando cada vez mais para trás.
Em 2019, quando a venda encolheu 14% em moeda local, houve a descoberta por parte da matriz de fraudes contábeis, envolvendo estoque e bonificações da indústria, que obrigou uma intervenção mais direta da sede na rede.
Depois disso, em 2020, a receita chegou a subir um pouco, 4,5%, com a maior demanda por alimentos na pandemia, mas no ano seguinte, a receita voltou a cair, assim como em 2022 e 2023.
Segundo Durchon, a situação se deteriorou de forma mais acelerada nos últimos 18 meses.
Nesse período, o Dia perdeu 25% da sua receita, afetado por um recuo em volume vendido nas lojas, após fechamentos de pontos deficitários em anos seguidos, e pela deflação de alimentos. De acordo com dois ex-funcionários ouvidos, decisões das antigas diretorias que não deram certo também comprometeram desempenho.
“Virou um círculo vicioso, porque a operação não melhorava, mais lojas ficavam no vermelho, aí eles fechavam essas lojas, e consequentemente, a venda caía mais. Renegociaram dívida em 2020, alongaram passivos, mas isso não resolveu”, diz um ex-diretor.
O ambiente de maior competição com canais com forte apelo promocional, como o atacarejo, teve impacto no negócio. O tema chegou a ser citado pela empresa em relatório recente de resultados. Em 2023, a venda líquida no país foi de 730 milhões, recuo de 18%.
Nos últimos dias, Durchon tem se reunidos com fornecedores, franqueados, funcionários e bancos, na busca de apoio para uma reestruturação — ele não chegou a mencionar a hipótese recuperação judicial às partes.
Nesse processo, os fornecedores precisam apoiar a rede para manter o abastecimento das lojas (ponto fundamental até aprovar o plano de recuperação) e as franquias têm que continuar abertas. Elas serão 50% das lojas após os encerramentos. Os bancos tem menor parte da dívida, pouco mais de 25% do total.
Foram enviados comunicados a 120 dos 600 fornecedores nos últimos dias, em que se explicava a situação da rede. No início da semana que vem, há reuniões marcadas com fabricantes. Durchon ainda fez encontros com franqueados para tranquilizá-los da fase atual.
O executivo não vê o risco de que franqueados rescindam o contrato com a rede, e não confirma se o contrato permite isso, por conta da excepcionalidade do pedido de recuperação.
“Não falamos de ‘RJ’ com eles, mas até o momento, mas não tivemos nenhum franqueado falando em fechar loja, pelo contrário, nos deram apoio”, diz o CEO. “O franqueado está no risco com a empresa, ele investiu o dinheiro dele. Mas vemos as franquias como uma fortaleza, e disso isso a eles. É um de nossos DNAs, e vamos trabalhar para mantê-los abastecidos”.
As franquias da rede compram da empresa, que precisa manter as entregas da indústrias para evitar ruptura nesse processo.
É nessa hora que muitas varejistas em recuperação têm problemas, porque há o desabastecimento, a venda cai e o cliente não volta.
Durchon, como diretor financeiro do Carrefour de 2014 a 2021, estava à frente da rede na sua abertura de capital no Brasil em 2017, e iniciou a complexa integração do Big com o Carrefour, em 2022. Apesar da experiência, é a primeira vez que preside uma varejista, e num momento dificílimo.
Para reforcar a equipe, contratou Mario Toledo (ex-Big) e Dacio Moraes (ex-Carrefour), ambos executivos do Dia no passado, para a linha de frente.
Durchon não comenta outras soluções que estavam na mesa, mas o Valor apurou que, após sondagens da empresa no mercado, fundos de investimento chegaram a fazer propostas para comprar a rede neste ano.
Um acordo envolveria, inicialmente, alguma capitalização dos controladores na empresa antes da venda, por causa da dívida. O problema é que essa ideia não agradava os acionistas. “Os espanhóis já injetaram muito dinheiro aqui, inclusive após a descoberta da fraude”, diz um ex-funcionário.
A respeito dos trabalhadores, a empresa decidiu não dispensar os empregados das unidades fechadas até entrar com a recuperação judicial. Isso porque, se isso ocorresse, os trabalhadores iriam se tornar credores na Justiça. Ao excluí-los do processo, a dívida entra como não concursal, e, logo, tem prioridade no pagamento.
O foco daqui para frente é ter o pedido de recuperação homologado pela Justiça e, então, montar o plano de recuperação em 60 dias, prazo definido por lei.
A hipótese de venda de ativos da rede é pequena, porque não há muito o que vender. “De imóveis é quase nada, é tudo alugado. Mas temos créditos de ICMS de mais de R$ 300 milhões, e vamos nos debruçar num plano que dê o tempo que precisamos, e que volte a gerar caixa para os pagamentos”, afirma.
Algumas ações começam a ser colocadas de pé pela rede, como o corte de despesas com as lojas a serem encerradas, e a entrada de recursos no caixa com as liquidações de produtos nessas unidades. As promoções devem durar cinco semanas. Ainda está previsto um maior o fortalecimento da marca própria nas lojas, uma referência da empresa por décadas, e que ainda responde por mais de 20% das vendas.