Débora Pereira é o tipo de pessoa que fala sorrindo. É natural dela. Mas, mesmo que não fosse, não faltariam motivos. Terminado o 3º Mundial de Queijos do Brasil, que começou na quinta-feira (11) e terminou neste domingo (14), o saldo não poderia ser mais positivo. Foram avaliados cerca de 1.900 queijos. Além de produtos do Brasil estavam presentes outros 14 países e o mais espetacular, a feira permanente ao público esteve lotada todos os dias. O Mundial do Queijo do Brasil tomou todas as instalações e o hall de entrada do Teatro B32, conhecido como teatro da baleia por conta de um enorme animal em prata cintilante na frenética avenida Faria Lima, em São Paulo, o principal centro financeiro da capital.
Débora é uma jornalista que se apaixonou pelos lácteos lá atrás, esteve à frente da SerTãoBras, uma entidade da sociedade civil criada em 2009 para promover o queijo artesanal no país, na qual hoje ela é a diretora geral e que conta com 250 associados em 17 estados. Em 2018, ela se tornou professora queijeira pela Mons, de Saint-Haon-le-Châtel, uma das principais queijarias da França desde os anos 1960, e que em 2005 abriu um Centro de Formação Internacional voltado a produtos lácteos.
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A organização do Mundial do Queijo é da SertãoBras, patrocinado por 32 investidores, entre empresas, entidades nacionais e internacionais e produtores de queijo. Durante o evento, em que Débora foi a mestre de cerimônia, ela reservou um tempo (precioso) para falar com a Forbes. Confira:
Débora Pereira: O Brasil é um país muito quente. Então, a gente sempre teve uma tradição de comer coisas mais frescas, porque faz calor e a gente gosta desse frescor, como o Minas fresco, por exemplo. E o leite do Brasil ele uma microflora, uma microbiota, ele tem bactérias que são muito mais ricas do que o que a gente vê na França, hoje. Por causa do pasto, do clima, do solo, das árvores, da fauna. Isso se chama terroir. É tudo isso junto que dá uma tipicidade para o queijo brasileiro.
O brasileiro tem aprimorado sua demanda por queijo?
Nos últimos 10 anos, o brasileiro começou a viajar mais e começou a demandar esses produtos mais especiais que são os curados. Em 2017, a SertãoBras, que nasceu em 2008, a gente já defendia que o queijo da canastra devia ser vendido em São Paulo, legalmente, porque antes era ilegal.
Era traficado esse queijo, um risco.
A gente começou desse jeito, trazendo o queijo da Serra da Canastra para São Paulo, militando por esse queijo sem fronteiras.
Até quando foi isso?
Em 2012 fui fazer meu doutorado na França e comecei a ter contato com essa cultura queijeira. Comecei a trabalhar em uma revista especializada, na França – eu também sou jornalista – e vi esses eventos. E pensava ‘tem que ter um evento desses no Brasil’. E ao mesmo tempo, não é só fazer um evento, mas a gente precisava realizar muitas formações no Brasil. A principal delas é a formação de cura. Junto com dois franceses, lançamos um guia de cura de queijos em 2017, justamente ensinando como fazer essas cascas mais complexas, as cascas mofadas. Os produtores começaram a gostar e ver que tinha um público muito de nicho que estava disposto a pagar mais para esse queijo mofado, dessa casca especial.
A ideia já havia, mas quando ela começou a ganhar vida?
Não havia um público muito grande, justamente por ser nicho. A gente precisava também fazer eventos para o grande público, o consumidor final. Começamos a fazer, também, muitas formações de análise sensorial, de degustações para consumidor final. Porque, se estávamos ensinando o produtor a fazer um queijo diferente para o Brasil, era preciso ensinar o consumidor final a comer esse queijo, a comprar esse queijo.
Em paralelo, comecei a levar queijos do Brasil para concursos internacionais e a reação das pessoas era muito boa.Esses produtores começaram a ganhar medalhas. E isso é genial, porque o Brasil é o quinto maior produtor de leite do mundo. Só que em queijo a gente está lá no fim da fila. Mas em qualidade não é verdade. Nossa qualidade de leite é muito boa para queijos. Quando se analisa a microbiologia, somos mais ricos que a França, porque lá eles dependem da indústria de fermento.
Há queijos de fato ameaçados na França, como o brie?
Estamos vendo a luta deles para preservar o camembert, o brie, porque o mofo não se dá mais naturalmente no queijo. Só ocorre se eles colocarem um mofo controlado no laboratório e inoculado. Eles não fazem mais esse queijo naturalmente e aqui no Brasil a gente faz na Serra da Canastra. Você coloca um queijo, ele vai ficar branquinho de mofo sem colocar o pacotinho mágico de mofo da indústria internacional. Porque a gente tem essas bactérias no Brasil.
O Brasil tem diferenciações nessa área?
A gente tem um mofo selvagem no Brasil que é o único no mundo. É preciso valorizar muito esse mofo. Na análise final, dos 15 jurados supremos, vimos uma jurada inglesa defender um queijo todo mofado brasileiro. Ela falou ‘eu nunca senti esse gosto antes’.
O que tem a ver a nova geração com a aderência aos queijos artesanais?
A comida do planeta virou algo muito industrializado, estéreo e ultraprocessado. As pessoas começaram a querer voltar para uma comida de verdade e o queijo artesanal tem muito disso. Não é somente o sabor do queijo, o jeito de fazer, a maneira de curar, mas o engajamento da pessoa, a história de voltar para o campo e de querer investir em algo que seja sustentável, olhe para o bem-estar animal e o respeito à natureza. Há uma juventude trazendo essa energia boa de todas essas intenções, que é o que o planeta está precisando agora. É genial isso acontecer no Brasil, porque o planeta não precisa que a gente fique atravessando queijo pelo Atlântico. Claro que continuamos a adorar os brie, os franceses e tudo mais. Mas tem muita pegada de carbono para esse queijo chegar aqui.
Para o queijo artesanal, de imediato e pela tradição, Minas Gerais é o primeiro estado lembrado. O que tem a partir daí?
A maior parte vem de Minas, depois São Paulo. Mas tem lugares inusitados, regiões que na tradição nunca foram regiões queijeiras no Brasil. E que agora estão motivados por essa moda do artesanal. Por exemplo, nesta edição há uma caravana de 39 pessoas de Mato Grosso, com vários alunos que estão fazendo o curso de queijos e que quiseram trazer algo para o evento. Há uma comitiva do comitiva do Rio Grande do Norte, uma de Valença, que é uma região de montanhas no Rio de Janeiro onde não se falava sobre queijo. Também há queijos de regiões do Espírito Santo, do Paraná, da Amazônia, da Ilha de Marajó, da Paraíba e do Ceará. Da Bahia vieram 30 queijeiros para o Mundial.
O que te chama a atenção dessa galera?
Um ponto do queijo de Minas Gerais é que ele tem essa característica do amarelinho tradicional, porque é um queijo protegido por uma indicação geográfica.E fica mais complicado inovar, enquanto outros estados não têm essa âncora tradicional, eles podem voar. Então, as pessoas têm criado queijos muito legais.
Para onde vai o Mundial do Queijo no Brasil, olhando o viés da participação de produtos no evento?
Quase 2.000 queijos no concurso já é um bom número. Vejo em concursos onde sou jurada fora do Brasil. Mas podemos ir além. Fui convidada para ser jurada suprema pela primeira vez no World Cheese Awards deste ano, feito por uma companhia de alimentos finos e que a cada ano acontece em um país. Esse será meu quinto ano como jurada. No ano passado foi na Noruega e éramos 250 jurados para julgar 4.500 queijos. Na tradição francesa, cada jurado de um concurso analisa não mais que 20 queijos e acho muito coerente. Na tradição anglo-saxônica, eles colocam para cada jurado avaliar 50 queijos por mesa. São quatro horas para você comer, é quase uma overdose. É um outro ritmo, assim uma outra cultura.
No Brasil, temos potencial para chegar a 4.500 queijos no nosso mundial, mas vamos precisar de um batalhão de até 600 jurados, para termos não mais que 20 queijos cada. Acredito porque neste ano o Ministério da Agricultura no Brasil já permitiu, por meio de uma carta, que queijos de outros países entrasse legalmente no Brasil somente para o concurso. Estava fora e retornei ao Brasil, no dia 23 de março, com 180 kg de queijo. Eram seis malas de 32 kg, sem problemas com o Vigiagro (Vigilância Agropecuária Internacional). Isso ajudou muito, porque dos cerca de 1.900 queijos desse Mundial, 10% já vieram da Europa, como Itália, Suíça, Reino Unido, Espanha, mais Estados Unidos, México. Tivemos até queijos da Argélia, que amigos africanos enviaram a partir do Marrocos.