O que existe de tão especial em áreas do mundo conhecidas por ter um número de centenários acima da média e nas quais esses idosos vivem com vigor e saúde? Foi com essa curiosidade que a jornalista Lilian Liang partiu, em 2023, para uma expedição para visitar as chamadas blue zones (ou zonas azuis), cinco regiões do planeta cuja expectativa de vida é superior à média mundial e nas quais não é incomum encontrar idosos com mais de cem anos cuidando do jardim, cavalgando ou viajando com os amigos.
Diretora de redação da revista Aptare, publicação sobre longevidade voltada para profissionais de saúde, Lilian passou cerca de dois meses viajando ao lado do documentarista Gabriel Martinez para conversar com especialistas e idosos desses locais e entender quais são os fatores determinantes para viver mais e melhor.
A viagem começou pela região de Nicoya, na Costa Rica; seguiu para Loma Linda, nos Estados Unidos; Okinawa, no Japão; e Icária, na Grécia; e terminou na Sardenha, na Itália. Ao voltar para o Brasil, a dupla ainda visitou Veranópolis, município gaúcho que vem sendo estudado por sua alta expectativa de vida e condições favoráveis a um envelhecimento saudável e com qualidade de vida.
Lilian destaca que pesquisas feitas nessas regiões do planeta já demonstraram alguns aspectos comuns a todas elas que ajudam a explicar a longevidade de seus habitantes, como manter uma alimentação mais natural, movimentar-se nas atividades do dia-a-dia, cultivar relações sociais e ter um propósito de vida. Mas por meio das mais de 70 entrevistas que fez na expedição, a jornalista diz ter percebido coisas mais sutis relacionadas a esses pilares.
“Me chamou a atenção a importância das relações sociais e da família. Lá, os idosos vivem muito cercados da família e são acolhidos, continuam sendo ouvidos”, diz. Ter um propósito de vida, mesmo que seja algo aparentemente simples ou trivial, como cuidar do jardim ou ver os netos crescerem, também está presente na vida da maioria dos centenários, diz Lilian.
Os detalhes de como esses idosos vivem e quais lições podem nos ensinar estarão em uma série de três reportagens especiais escritas por Lilian e que o Estadão passa a publicar semanalmente a partir desta quinta-feira, 21. Na entrevista abaixo, Lilian conta um pouco mais da sua experiência visitando as blue zones e adianta alguns dos pontos que serão trazidos em suas reportagens.
Como surgiu a ideia de fazer essa expedição para as blue zones?
Trabalho com envelhecimento há 12 anos e venho da cobertura de saúde. Começando a ler sobre as questões de longevidade, me deparei com alguns artigos que falavam sobre essas áreas que tinham uma longevidade extrema, em que as pessoas viviam por muito tempo, com muito boa qualidade de vida, e sempre fiquei curiosa para entender o que contribuía para elas viverem tanto e viverem bem. A minha avó, por exemplo, chegou aos 92 anos, mas passou 15 anos debilitada, mas essas pessoas estavam chegando aos cem anos com boa qualidade de vida: estavam inseridas no contexto social, tinham saúde, se alimentavam bem.
Tenho uma revista que fala sobre longevidade para profissionais de saúde e, quando a revista completou dez anos, eu queria trazer alguma coisa nova, pensei o que eu podia trazer de inédito, e ninguém no Brasil tinha feito essa viagem, então falei: vou lá, vou ver o que acontece nesses lugares. Só que a revista fez dez anos em 2022 e a gente estava no meio da pandemia, fronteiras ainda estavam fechadas, então a gente começou a se organizar para essa viagem, e fomos em abril de 2023.
Quanto tempo vocês ficaram viajando?
Foram quase dois meses na expedição. A gente fez Costa Rica, Estados Unidos, Japão, Grécia, Itália e voltamos para o Brasil. Como a ideia era também discutir a longevidade no Brasil, a gente foi, na volta, para Veranópolis, que é considerada a terra da longevidade, onde são feitas muitas pesquisas a respeito. A gente quis ir até Veranópolis para conversar com os pesquisadores e os centenários de lá e contextualizar isso para a nossa realidade também. E o que a gente observou lá é que, como no Sul do Brasil tem muita imigração italiana, a gente identificou os mesmos hábitos que vimos na Sardenha, como o consumo de vinho, a alimentação mediterrânea, um estilo de vida muito de roça, do trabalho no campo, então a gente conseguiu identificar alguns denominadores comuns.
O que você apontaria como fatores determinantes para esses idosos chegarem a essa idade com qualidade de vida?
A gente já fala muito de alimentação e atividade física, isso é uma coisa que já tá muito bem estabelecida, né? Então a gente via que, com exceção de Loma Linda (EUA), que foge um pouco do padrão das outras blue zones porque é numa área mais urbana, as outras áreas têm uma vida muito voltada para o campo, então as pessoas cultivam o seu próprio alimento, comem muito orgânico, tem toda uma coisa muito natureza. A gente já sabe que ter uma alimentação mais voltada para vegetais é algo que beneficia a nossa saúde, assim como se manter ativo. Não necessariamente ir para academia puxar ferro, mas você se manter em movimento também é algo que ajuda muito a viver.
Mas o que me chamou muito a atenção foi a importância das relações sociais e da família. Eu não tinha a dimensão do quão importante era aquilo na vida dos idosos. Então, para quem vive numa cidade grande, às vezes conseguir ver a mãe uma vez por semana já é muito, mas lá os idosos vivem muito cercados da família e eles são acolhidos, continuam sendo ouvidos. O dom Ramiro, que é um senhor de 101 anos da Costa Rica, diz que ele é o chefe da família e vai ser até o dia em que morrer. Ele tem muita certeza do lugar dele na família e a família respeita esse lugar, dá ouvidos, que é uma coisa que a gente vê cada vez menos na sociedade, porque é mais comum a gente ver os idosos sendo deixados no cantinho.
Nessas regiões, o que eu percebi é que esses idosos não têm medo de ficarem sozinhos ou abandonados no final da vida porque eles estão inseridos. E isso eu vi como algo que a gente poderia fazer pelos nossos idosos e que muitas vezes a gente não faz, mas que contribuem muito para o bem-estar e para a qualidade do envelhecimento dele.
Isso se relaciona de alguma forma com a questão de ter um propósito de vida como um dos fatores para a longevidade? Considerando que esse propósito pode, inclusive, ser algo relacionado a estar com a família ou ver os netos crescerem?
Com certeza. A questão do propósito de vida está muito relacionada com a questão familiar, então muitos idosos com quem eu conversei relacionavam diretamente a questão. Então, (quando questionados) ‘qual é a razão pela qual você acorda todos os dias’, respondem: ‘porque eu quero ver o meu neto crescer, quero ver a minha filha’.
Uma pessoa com essa idade provavelmente já passou por muitos desafios, perdas, limitações, como é a questão da resiliência nesses idosos?
Sim, a gente percebe que são muito resilientes. Uma das coisas que está bem estabelecida em pesquisas é que quem tem um propósito de vida tem mais resiliência e vice-versa, porque são coisas que se retroalimentam. A gente conseguiu observar que as pessoas mais resilientes eram as que tinham uma razão para acordar todos os dias. E esse propósito pode ser medido por metas e objetivos, não é algo abstrato, é algo concreto. Então se o propósito de vida é ver o neto crescer, ele vai encontrar maneiras de se adaptar diante das adversidades para conseguir alcançar esse objetivo.
E esse propósito de vida não precisa ser algo super grandioso, certo? Poderia dar alguns exemplos do que você viu que era o propósito de vida de alguns desses centenários?
Essa questão de ficar com a família, ver o neto crescer, muita gente gostava de cuidar do jardim, então cuidar do jardim era a razão pela qual a pessoa levantava todos os dias. Entrevistamos um senhor japonês que falava muito pouco, mas, quando desligamos a câmera e perguntamos qual era o ikigai dele, que é o conceito em japonês para razão de viver, ele foi nos mostrar o jardim dele. Era um jardim super grande e você tinha que ver a alegria dele de falar dos tomates, alface, você via que aquilo era o que movia ele, que o objetivo dele era ver o jardim florescer, que ele cuidava com carinho e você via o olho dele brilhar.
Eu conversei com uma especialista, a Cristina Ribeiro, que é da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia, e fez uma revisão de estudos sobre propósito de vida. Ela falou que tem toda essa questão das metas, objetivos, de ser algo que tenha intencionalidade, algo que dê direção na sua vida, mas, de uma maneira bem resumida, ela falou que o propósito de vida é algo que faz o teu olho brilhar, aquilo que você pensa: ‘eu quero continuar vivo para fazer isso’.
Tinha uma senhora que tinha falecido há algumas semanas na Grécia, ela tinha 110 anos, mas nos contaram que ela ainda trabalhava no tear e, com essa idade, ela tinha ido pedir um empréstimo no banco porque queria ampliar as operações dela, então você percebe que ela tinha um propósito de vida muito claro. Ela queria continuar trabalhando no tear, que era algo que ela gostava, fazia ela levantar da cama, então são coisas muito simples que a gente via.
Outra coisa é o conceito de moais. Quando a gente lia (nas pesquisas), eles eram traduzidos só como grupos de amigos, mas, na verdade, é um grupo de amigos que tem um aspecto financeiro também. Eles se juntam e se ajudam mutuamente com dinheiro. Eles viajam juntos com o dinheirinho que juntaram no moai. E isso fortalece as amizades, os laços de confiança. Então, para muitos, o moai era o propósito de vida.
A maioria das blue zones fica em áreas rurais ou em pequenos municípios. Acha possível reproduzirmos esses pilares em um contexto de grandes cidades?
Acho que sim, mas precisa haver uma mudança muito grande no modo de vida que a gente tem hoje. A gente tem muitos amigos nas telas, mas não saímos para encontrar nossos amigos. É necessário fazer um esforço porque a gente não tem um contexto que favoreça. A vida na cidade é muito louca, às vezes desistimos de sair com amigos por causa do trânsito, a construção de relações é um pouco mais difícil, a nossa alimentação também está mais complicada porque estamos consumindo cada vez mais ultraprocessados, então nada do nosso modo de vida atualmente colabora com a longevidade.
Para chegarmos aos cem anos, precisamos de mudanças de hábitos, pensar mais em alimentação, na atividade física, cultivar nossas relações, alimentar os nossos vínculos afetivos. Estamos vendo que a solidão está levando a um declínio da saúde mental, então às vezes temos que olhar para esse modo de vida mais simples e tradicional, que é como vivem esses idosos, ver a construção que eles fizeram. A gente tem que entender como é que esses idosos chegaram aos cem anos com qualidade de vida, porque hoje a gente tá conseguindo estender a vida, mas muitas vezes sem qualidade.