Ao passo que os análogos do GLP-1, a classe de medicamentos como o Ozempic, são usados por cada vez mais pessoas e novos estudos surgem apontando efeitos positivos além do controle da diabetes tipo 2 e da obesidade, pesquisadores da Washington University School of Medicine in St. Louis e do Veterans Affairs St. Louis Health Care System decidiram fazer uma uma pesquisa ampla, resultando no mais extenso atlas sobre os benefícios e riscos dessas injeções.
“Percebemos que ninguém havia feito uma análise sistemática examinando todos os possíveis resultados do GLP-1, sem deixar pedra sobre pedra. É como descobrir uma nova terra, a primeira coisa que você quer fazer é mapeá-la”, explica o autor sênior do estudo, Ziyad Al-Aly, epidemiologista e nefrologista que trata pacientes no John J. Cochran Veterans Hospital, afiliado à WashU Medicine.
Usando o banco de dados dos veteranos dos Estados Unidos, eles compararam pacientes com diabetes que passaram a usar análogos do GLP-1 e aqueles que mantiveram apenas o tratamento clássico com três outras classes de medicamentos para controle da glicemia — comercializados com nomes como Jardiance, Glipizide e Januvia — para um conjunto abrangente de 175 desfechos de saúde. Ao todo, as análises incluíram mais de 2 milhões de pacientes.
Além de proteção contra os chamados eventos adversos cardiovasculares importantes (MACE, na sigla em inglês), já amplamente divulgados, o estudo trouxe algumas surpresas, como impactos positivos no cérebro, com reduções no risco de Alzheimer e de adicções. Por outro lado, foram detectados reflexos negativos no pâncreas e nas articulações que não haviam sido vistos anteriormente.
Ao todo, a adição de análogos do GLP-1 foi associada a uma redução no risco de 42 desfechos e um aumento no risco de 19 — nenhuma associação estatisticamente significativa foi encontrada para os outros 114 (65,14%) observados. Os resultados foram publicadas na respeitada revista científica Nature Medicine.
“Quando consideramos tudo junto, fica evidente que esses medicamentos atuam em múltiplos órgãos e sistemas”, diz Al-Aly. “Esses medicamentos realmente funcionam. Mas também é importante observar que não são isentos de efeitos colaterais.”
Ao fazer a comparação com outros medicamentos, a ideia dos pesquisadores não é promover uma competição entre eles, mas permitir que médicos e pacientes tenham mais informações para que possam escolher a melhor opção de tratamento. “A decisão deverá ser personalizada com base no perfil de risco, nas preferências, no perfil de comorbidades e na condição de saúde do paciente.”
Estudo valioso
Os múltiplos efeitos de análogos do GLP-1 — moléculas que imitam o hormônio GLP-1, que deveria ser naturalmente liberado quando nos alimentamos, desencadeando a liberação de insulina — não são de todo inesperados.
“O pleiotropismo (capacidade de um medicamento de produzir múltiplos efeitos em diferentes órgãos ou sistemas, além de seu efeito primário) não tem nada de fantástico”, diz o endocrinologista Bruno Geloneze, pesquisador principal do Centro de Pesquisa em Obesidade e Comorbidades (OCRC) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que não esteve envolvido no estudo.
“É absolutamente o que é esperado porque qualquer hormônio ou seu análogo não atua em um único local. Se fosse o caso, não seria nem hormônio”, explica.
Mas ele frisa que o novo estudo tem um “valor monumental por conta do volume e da qualidade do registro”. “Ele foi além dos achados ativamente buscados. Alguns achados muito importantes dificilmente vão aparecer em estudos clínicos com 1 mil, 2 mil ou 3 mil pessoas.”
“Foi observada (no novo estudo) a redução do risco de câncer de fígado, algo que é difícil de ser detectado em estudos clínicos com amostras menores porque, em termos absolutos, são poucas as pessoas que irão desenvolver um desfecho tão grave”, exemplifica.
Porém há limitações. Por exemplo: uma alteração na bula do medicamento exigiria um estudo clínico controlado (com grupo placebo, randomizado e sem os pesquisadores saberem quem está recebendo a medicação), comenta Geloneze. Os novos resultados abrem portas para múltiplas pesquisas que podem consolidar os achados.
O endocrinologista também destaca que aspectos como a universalização dos resultados requerem cuidado já que os pesquisadores recorreram a uma base de dados muito específica, composta majoritariamente por informações de pessoas brancas e mais velhas.
“É uma população mais velha do que a que costumamos atender nos ambulatórios. Apenas 1,6% da amostra tinha menos do que 40 anos, quando sabemos que grande porção das pessoas com diabetes tem menos de 40. Menos do que 50, que são a maioria dos diabéticos usando drogas orais, só 7%.”
De maneira geral, o médico acredita que a medicina vai se basear cada vez mais em análogos de hormônios gastrointestinais conforme a ciência for documentando os efeitos sistêmicos dessas medicações.
Cérebro
O que foi surpreendente, mas não completamente inesperado porque estudos do grupo de Geloneze já haviam sugerido essa possibilidade, foi a dimensão do efeito dos análogos do GLP-1 no sistema nervoso central. O estudo apontou redução do risco de demências, incluindo o Alzheimer, e do uso problemático de substâncias (adicção), como álcool e opioides.
A nova pesquisa também indicou diminuição do risco de ideação suicida, contrariando um episódio do início do ano passado. Na época, houve uma discussão sobre uma possível associação da medicação com aumento de ideação suicida após a Islândia relatar três casos — a relação logo foi refutada pela Agência Europeia de Medicamentos (EMA). Geloneze avalia que esse estudo de mundo real, mostrando exatamente o contrário, reforça a segurança das injeções para esse desfecho.
Alerta do pâncreas
Ao Estadão, Al-Aly confirma que a maior preocupação dos pesquisadores está relacionada ao aumento do risco de pancreatite aguda (uma inflamação do pâncreas).
“A pancreatite aguda é uma condição grave que pode levar a hospitalizações e, em alguns casos, ser fatal. Embora seja um efeito colateral raro, ele está presente e pode ser letal em algumas situações, tornando-se uma preocupação séria”, fala.
Muitos dos efeitos colaterais encontrados no novo estudo, como pancreatite e complicações agudas de pedras nos rins, não aparecem na bula dos análogos do GLP-1. Com as descobertas da pesquisa, ele avalia que órgãos reguladores como a Administração de Alimentos e Medicamentos dos Estados Unidos (FDA), a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e a EMA deveriam demandar mais dados de segurança das farmacêuticas.
Geloneze concorda que devemos nos preocupar, mas não no sentido de abandonar essas medicações. “É preciso ter mais cuidado e ser mais ativo na busca de tais complicações”, pondera.
Mecanismos
Questionado sobre como os análogos do GLP-1 podem ter efeitos sistêmicos, Al-Aly afirma que há algumas hipóteses.
Tanto o controle da diabetes tipo 2 quanto da obesidade, os dois objetivos primários desses medicamentos, diminuem a inflamação crônica do paciente. Em alguns casos, há uma perda de peso significativa, que pode mediar por si só esses efeitos, observa.
Por outro lado, receptores de GLP-1 estão espalhados por todo o corpo, inclusive no cérebro. Além disso, estudos experimentais mostram que o GLP-1 reduz a neuroinflamação, estabiliza o funcionamento do tecido que reveste os vasos sanguíneos e diminui o risco de formação de coágulos, lembra Al-Aly.
“E esses caminhos podem coexistir. Esses mecanismos não são mutuamente exclusivos”, finaliza.