A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) desta quarta-feira, 26, de descriminalizar o porte de até 40 gramas de maconha reacendeu o debate sobre os efeitos do uso recreativo da substância à saúde. Embora seja uma droga com menor potencial de causar dependência e geralmente associada a efeitos psicoativos mais leves, ela pode, sim, provocar danos, principalmente quando usada por um período prolongado e em altas quantidades.
O Estadão conversou com quatro especialistas para entender quais os principais efeitos da substância à saúde, o que é verdade e o que é mito sobre o uso da maconha e em quais situações ela pode provocar problemas graves ao usuário. Veja abaixo as respostas para as principais dúvidas sobre o tema.
Quais são os efeitos da maconha no corpo?
O médico psiquiatra Arthur Guerra, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) e presidente do conselho diretor do Instituto Perdizes, explica que os efeitos da cannabis no organismo podem ser divididos naqueles de curto prazo e de longo prazo.
De maneira imediata, tragar a planta leva ao aumento da frequência cardíaca, alterações na coordenação motora e comunicação, bem como efeitos nos olhos, que ficam avermelhados, além de uma sensação de boca seca. Ele destaca, porém, que as alterações nos batimentos cardíacos, em geral, não representam um risco grave.
A maconha também costuma causar uma sensação de relaxamento em um primeiro momento, mas, se usada por períodos prolongados e em grande quantidade, o efeito contrário pode ocorrer, e o paciente tende a ficar agitado e ansioso, segundo o psiquiatra Rodrigo Bressan, presidente do Instituto Ame Sua Mente e professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Já no longo prazo, dizem os médicos, o uso frequente pode levar a prejuízos cognitivos, como problemas de memória e concentração, além da chamada síndrome amotivacional ou avolitiva, caracterizada pela apatia e falta de vontade de cumprir com as atividades cotidianas.
Quais danos a maconha pode causar à saúde?
Os especialistas destacam que as substâncias presentes na maconha dificilmente causam efeitos graves ou que levem à morte de forma aguda. Não há registros de óbitos por overdose de maconha, por exemplo. No entanto, explicam os especialistas, isso não significa que a substância não possa causar danos.
Alguns usuários, quando usam a planta, podem apresentar crises de ansiedade, ataques de pânico ou até quadros psicóticos. “Nesses casos, a pessoa costuma achar que vai morrer ou que está ficando louca. Ou então ter delírios e alucinações, achar que está sendo perseguida. Isso acontece principalmente nas primeiras vezes em que a pessoa está consumindo ou então quando ela não controla a quantidade que utiliza”, explica Bressan.
Embora esses efeitos não sejam potencialmente fatais, eles podem levar a comportamentos impulsivos que acabam colocando a pessoa em situações perigosas, como explica Elton Kanomata, psiquiatra do Hospital Israelita Albert Einstein. “Há maior risco de violência contra si próprio e contra os outros, chance maior de tentativa de suicídio, acidentes”, diz o médico.
Ele diz que nem todos que manifestarem comportamentos impulsivos chegarão a situações extremas de colocarem a vida em risco, mas que tais condutas podem criar outros tipos de problema. “Se a pessoa entra em um quadro psicótico e em um estado de grandeza, ela pode fazer compras compulsivamente e depois ficar endividada”, exemplifica.
Segundo o biólogo e neurocientista Renato Filev, coordenador científico na Plataforma Brasileira de Política de Drogas e pesquisador da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), esses efeitos psicoativos são causados principalmente pelo tetrahidrocanabinol, ou THC, um dos compostos presentes na cannabis. É ele que causa a sensação de euforia e que pode levar alguns usuários a comportamentos problemáticos.
Filev frisa, no entanto, que os efeitos não afetam todos os usuários. Sua intensidade depende de questões como a cepa da planta, a forma de consumo (se ingerida como alimento ou fumada), a predisposição genética do indivíduo para quadros psicóticos ou outros transtornos mentais e o contexto em que a droga é utilizada. “Faz diferença se o indivíduo consome maconha em um show ou em casa; cercado por desconhecidos ou por pessoas de confiança”, explica.
Outro ponto que determina a intensidade dos efeitos psicoativos, dizem os especialistas, é a concentração de THC do produto a ser consumido. De acordo com Bressan, os produtos considerados mais puros, como o haxixe e o skank, têm uma concentração de THC de sete a dez vezes maior do que o chamado “prensado”, versão da maconha misturada a outras substâncias e que é vendida por um preço mais baixo.
Se, por um lado, os produtos mais puros são considerados de melhor qualidade e dão “mais barato”, eles têm maior risco de causar quadros eufóricos pela alta concentração de THC. “A maconha possui mais de 500 princípios ativos. São substâncias capazes de interagir com o organismo humano e que, de certa forma, podem exercer um papel variado dentro dele”, esclarece Filev. Importante ressaltar que o prensado também tem riscos, em especial os relacionados a eventuais substâncias tóxicas que costumam ser adicionadas à mistura.
A maconha pode ‘queimar’ neurônios?
De acordo com os especialistas, a crença popular de que a maconha é capaz de “queimar” neurônios é um mito. “A ideia de que a maconha mata neurônios é frequentemente baseada em pesquisas antigas com metodologias questionáveis. Estudos mais recentes demonstram que a planta não possui esse efeito prejudicial”, explica Filev.
Alguns compostos da planta, no entanto, podem, sim, causar prejuízos às funções cerebrais, principalmente após um período longo de uso. Os especialistas destacam que vários estudos científicos já demonstraram prejuízo para funções cognitivas como memória, aprendizado e concentração.
“O uso prolongado da maconha, por causa desse excesso de excitabilidade neuronal provocada pelo THC, pode levar a processos inflamatórios e ser danoso para os neurônios”, explica Kanomata.
Em posicionamento divulgado em 2022, a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) destacou que o abuso de substâncias psicoativas presentes na cannabis podem desencadear quadros psiquiátricos, como a esquizofrenia, e, ainda, piorar os sintomas de doenças mentais já diagnosticadas, como depressão e ansiedade.
Segundo a associação, estima-se que o risco para desenvolvimento da esquizofrenia aumente em quatro vezes com o uso da cannabis e que o prognóstico da doença piore com o consumo da maconha.
“Os transtornos mentais são sempre uma combinação dos efeitos do ambiente e biológicos do indivíduo. Na esquizofrenia, a maconha é um componente causal. Tem base genética, tem as questões do ambiente, e a maconha potencializa, age em receptores (do cérebro) que causam desequilíbrio”, diz Bressan.
Os especialistas esclarecem que é preciso diferenciar o uso recreativo da maconha do consumo dos produtos medicinais feitos a partir da planta cannabis sativa. Isso porque os diferentes compostos presentes nela têm mecanismos de ação diversos, e os efeitos do produto consumido vão depender de quais compostos estão presentes e em qual concentração.
É por isso que a planta, mesmo que tenha compostos com possíveis efeitos nocivos, pode também ser matéria-prima para produtos medicinais contra doenças como epilepsia, síndromes raras e Parkinson. “A maioria dos produtos medicinais são feitos com outro composto da maconha, o canabidiol (CBD), e com baixa ou nenhuma concentração de THC. O canabidiol pode ter um efeito neuroprotetor, por isso é usado nesses produtos”, explica Kanomata.
E ao pulmão? Há riscos?
A combustão de uma matéria vegetal como a maconha também pode causar um agravo ao aparelho respiratório da pessoa que faz a ingestão. Arthur Guerra destaca que, no caso dos “prensados”, há ainda o risco de consumir outros substância tóxicas sem saber quais são.
“Você está colocando algo no pulmão sem saber o que contém. Não há certificado de pureza, então você não sabe se há substâncias tóxicas. Imagine o perigo de não saber; pode ser algo realmente tóxico”, alerta o psiquiatra. Por isso, a pessoa pode desenvolver tosses frequentes, bronquite e inflamação nas vias aéreas.
Quantos gramas ou frequência de uso da maconha podem trazer efeitos prejudiciais?
Para os especialistas, é difícil definir a partir de qual dose a maconha começa a trazer prejuízos mais substanciais à saúde ou falar em “dose segura” da substância. Isso porque todos os fatores já mencionados influenciam nessa avaliação: tipo da planta, concentração de THC, frequência de uso, contexto social do usuário, predisposição genética a problemas mentais, entre outros.
“É impossível definir uma quantidade de maconha que seja satisfatória ou prejudicial para cada usuário”, explica Filev. Segundo ele, existem pessoas que fumam 20 gramas em um dia e outras que, com um único trago, já apresentam desfechos desfavoráveis. Por isso, não há consenso científico que defina uma quantidade ou frequência específica como negativa. Cada organismo reage de uma maneira distinta.
O que se sabe é que um cigarro de maconha – ou baseado, como é mais conhecido – costuma ter de 0,3 grama a 1 grama. Com isso, as 40 gramas definidas pelo STF como volume limite para um usuário portar seria suficiente para a produção de 40 a 120 cigarros de maconha.
“Se a pessoa consumir 40 cigarros em um dia, é possível que ela vá ter sintomas ansiosos ou psicóticos, pois, quanto maior a dose, maior o risco, mas é difícil prever como cada organismo vai reagir”, diz Bressan.
A visão geral dos especialistas é que a maconha é uma droga menos potente e menos prejudicial do que substâncias como a cocaína, o crack e a heroína, mas que é falsa a percepção que alguns têm de que ela é inofensiva. Pessoas com predisposição genética a problemas mentais ou que já tenham diagnóstico de um transtorno devem estar mais atentas a esses riscos.
Maconha vicia?
Diferentemente do que algumas pessoas acreditam, a maconha pode, sim, viciar, segundo os especialistas. Aliás, para Guerra, a dependência é o maior problema associado ao uso de maconha. Os especialistas dizem que o desenvolvimento da adição não é comum, mas que, quando acontece, causa prejuízos na vida do indivíduo, inclusive com a ocorrência de síndrome de abstinência.
Segundo Filev, a droga pode provocar o chamado “transtorno por uso de maconha”, que, de acordo com ele, afeta cerca de 10 em cada 100 usuários. “A maconha pode levar ao uso compulsivo. Por isso, é essencial oferecer orientação sobre os riscos associados ao uso dentro de um programa abrangente de promoção de saúde”, destaca o biólogo.
Outro ponto de alerta, segundo Guerra, é o fato de o efeito da maconha diminuir com o tempo de uso. Assim, aos poucos, os usuários acabam precisando consumir cada vez mais para alcançar o mesmo efeito do passado.
A situação é diferente para pessoas que utilizam a cannabis com fins medicinais. Nesse caso, Filev explica que não ocorre dependência, pois o uso terapêutico acontece com intenções diferentes, em contextos variados, doses ajustadas e vias de administração específicas.
Para lidar com a problemática do vício, Filev aponta que “acolhimento” é a palavra-chave, e deve ocupar o lugar do “julgamento”. “A gente quer que as pessoas sejam acolhidas e que se garanta o cuidado delas em liberdade dentro da rede de atenção psicossocial”, afirma o especialista.
Decisão do STF não legaliza consumo e venda da maconha
É importante ressaltar que, com a decisão do STF, o consumo e a venda de maconha não foram legalizados, ou seja, continuam proibidos na legislação. A diferença, na prática, é que, agora, quem for enquadrado como usuário – não portando mais do que 40g ou seis plantas fêmeas de cannabis – não terá antecedentes criminais. Mas a decisão só passa a valer quando o acórdão for publicado.