ENVIADA ESPECIAL A BRASÍLIA* – Em 2022, a designer de interiores Karina Porto, de 52 anos, foi ao ginecologista para tratar uma infecção urinária. Ela conta que, após realizar exames para verificar os níveis hormonais, o médico indicou uma reposição hormonal para evitar possíveis sintomas da menopausa. No entanto, a proposta que lhe foi apresentada era diferente dos métodos de reposição convencionais. Além de prometer o controle dos sinais da menopausa, o tratamento viria acompanhado de uma série de benefícios adicionais: uma pele mais saudável, mais disposição e maior facilidade para ganho de massa magra. Tudo isso viria em um implante de 1,5 cm contendo anabolizantes como gestrinona, testosterona, estradiol e metformina, um antidiabético de uso oral.
Conhecido como “chip da beleza”, o implante consiste em um bastonete de silicone do tamanho de um palito de fósforo, que é inserido sob a pele — geralmente nos glúteos ou no abdômen — para liberar, de forma contínua, medicamentos e hormônios com ação anabolizante. A promessa é atrativa: emagrecimento, ganho de massa muscular, aumento da disposição física e da libido, além de alívio dos sintomas da menopausa, sendo frequentemente apresentado como uma fórmula “antienvelhecimento”. No entanto, o produto não possui bula, não é regulamentado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e, segundo especialistas, oferece riscos à saúde, sendo prescrito de maneira indiscriminada por alguns médicos com motivações “altamente comerciais”.
“Como o médico era uma pessoa próxima e eu não entendia muito sobre o que ele estava me prescrevendo, eu confiei”, disse Karina. “Ele me disse que, com a menopausa, minha pele ficaria flácida e craquelada, que eu perderia a libido… Tudo isso me deixou preocupada. Como os métodos tradicionais de reposição foram chamados por ele de ‘ultrapassados’, acreditei que colocar o implante seria o melhor.”
Segundo a designer, os efeitos colaterais não demoraram a aparecer. Os primeiros sinais da “falsa promessa” foram o surgimento de acne severa, engrossamento do pescoço e da voz e o aparecimento de pelos no corpo. Um mês e meio depois, a situação se agravou. “Comecei a sentir cólicas renais intensas e, ao chegar ao hospital, descobri que estava sofrendo um infarto renal devido a uma trombose, resultado do uso excessivo e inadequado de anabolizantes”, conta Karina, que explica ter um rim vicariante – quando um único rim se expande para compensar a ausência do outro –, condição que nunca havia causado problemas.
Ela afirma que o ginecologista, que possui mais de 500 mil seguidores no Instagram e divulga ativamente o “chip da beleza”, sabia de sua condição, mas ignorou possíveis complicações. Além disso, Karina destaca que, antes do procedimento, o único exame solicitado foi o hormonal, sem qualquer avaliação mais aprofundada.
Além do infarto renal, a designer enfrentou alterações ginecológicas, como irregularidade menstrual e um quadro hemorrágico que a levou à Unidade de Terapia Intensiva (UTI). “Minha vida virou de cabeça para baixo. Eu não tinha nenhum problema de saúde, mas agora preciso restringir minha alimentação por causa do rim. Toda vez que viajo, preciso aplicar anticoagulantes porque fiquei predisposta à trombose. Além disso, comecei terapia devido a uma síndrome do pânico. Tenho muito medo de acabar no hospital de repente”, desabafou.
De acordo com a endocrinologista Adriana Moretti, uma das médicas que têm acompanhado Karina, o caso chamou atenção não só pelos anabolizantes prescritos, mas também pelo antidiabético, já que a paciente não é diabética. Ela explica que, por não existirem estudos sobre a administração dessas substâncias por meio de implantes, não é possível saber como ocorre a absorção e por quanto tempo elas permanecem no corpo.
“Como se trata de um dispositivo que vai liberando as substâncias, não é possível saber se há um padrão de liberação. Pode ser que em um dia ele libere uma pequena quantidade e no outro uma grande quantia. Isso é muito arriscado para o corpo. Também não temos qualquer pesquisa que ateste a segurança da mistura dos componentes’”, disse a médica.
Caso semelhante é o de Milena (nome fictício), de 47 anos. Ela conta que, em 2023, ano em que colocou o implante, já apresentava sintomas da menopausa. Os exames apontavam, inclusive, que ela estava vivenciando uma “tempestade de estrogênio”, necessitando de reposição hormonal. A sugestão de utilizar o “chip”, porém, partiu de sua oftalmologista, que a acompanhava há anos. O discurso era o mesmo: minimizar os efeitos da menopausa, com possíveis benefícios como uma pele melhor, mais disposição e maior facilidade para ganho de massa magra.
“O discurso é muito atraente. Você acaba acreditando que está fazendo o melhor para sua saúde, optando pelo que há de mais moderno. E isso não se sustenta apenas na conversa. Quando você chega às clínicas onde acontecem os implantes, eles oferecem um ‘shake’ de proteína, por exemplo. Todo um cenário sofisticado que te leva a crer que aquilo faz parte de um projeto de vida mais saudável, dentro daquele famoso ‘lifestyle’”, compartilhou Milena à reportagem.
Assim como Karina, ela também vivenciou impactos na saúde após colocar o implante, que, além de anabolizantes como testosterona e gestrinona, continha um hormônio chamado ocitocina, geralmente utilizado para induzir o trabalho de parto e vendido ilegalmente como estimulante da felicidade e do amor. A mistura dos componentes, de acordo com o hepatologista Raymundo Paraná, médico responsável por acompanhar o caso de Milena, resultou em um quadro de hepatite medicamentosa grave, além de inflamação muscular e aumento rápido e intenso do colesterol ‘ruim’ (LDL).
“No início, me culpei muito porque coloquei o chip em novembro e, um pouco antes, fiz exames que mostravam tudo normal, nada fora do lugar. Em dezembro, já estava na emergência pela primeira vez. Sentia muitas dores musculares, cãibras até nas costas, e não conseguia vestir uma blusa. Parecia que meu corpo tinha enrijecido, como se fosse travar e as fibras fossem estourar”, relatou Milena.
Reposição hormonal x chip da beleza
Segundo Paraná, o “chip da beleza” é uma moda à brasileira, não havendo qualquer evidência de utilização em outros lugares do mundo. Para ele, isso demonstra o risco associado ao seu uso. Ele ressalta ainda que os métodos tradicionais de reposição hormonal, tratamento médico formal destinado a corrigir deficiências hormonais em mulheres, possuem embasamento científico e são feitos com base em dois hormônios: progesterona e estrogênio, aprovados pela Anvisa apenas na forma de comprimidos orais e vaginais, gel e adesivos.
“Não há diretriz de nenhuma sociedade médica que defenda o uso de outros tipos de hormônios para reposição hormonal, especialmente via implante. Mesmo por questões estéticas, o uso de testosterona, gestrinona e afins é um equívoco absurdo que fere a fisiologia humana’”, opinou o médico. Ele lembra que o uso de esteroides androgênicos e anabolizantes para fins estéticos, assim como o “chip da beleza”, foram proibidos pelo Conselho Federal de Medicina (CFM).
Efeitos adversos incluem AVC e hipertensão
Casos como os de Karina e Milena impulsionaram sociedades médicas a lançar a plataforma “VIGICOM – Hormônios”. Encabeçada pela Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM), pela Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e Síndrome Metabólica (ABESO) e pela Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo), a iniciativa tem como objetivo compilar dados sobre os efeitos adversos do uso indiscriminado de hormônios, além de pressionar as agências reguladoras pela regulamentação do “chip da beleza”.
A plataforma permite que médicos registrem complicações observadas em seus consultórios. Em apenas dois meses, mais de 200 casos de efeitos colaterais relacionados ao uso inadequado de hormônios foram reportados, quase 50% associados ao “chip”. As principais complicações incluem os problemas cardiovasculares como acidente vascular cerebral (AVC), hipertensão e arritmia. Além disso, foram registrados casos de dislipidemia — aumento de colesterol e triglicerídeos —, internações em UTI e até óbitos.
Os dados coletados também indicam que as mulheres (80%) são as principais usuárias do implante, com uma média de idade de 42 anos. As idades, porém, variam, abrangendo pessoas entre 15 e 82 anos. Entre os principais motivos para o uso estão questões estéticas (48,4%), alívio de sintomas da menopausa (25%) e fadiga (36%), sendo comum que mais de uma razão seja citada pelos pacientes.
“As mulheres tornam-se as principais vítimas desse fenômeno, pois são as mais impactadas por uma pressão estética que valoriza a magreza e o antienvelhecimento, uma realidade cada vez mais reforçada pelas redes sociais”, destacou a diretora do Departamento de Cardiologia da Mulher da Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC), Alexandra Oliveira de Mesquita, durante o Congresso Brasileiro de Cardiologia, realizado em Brasília no fim de setembro. O “chip da beleza” foi um dos principais temas debatidos no evento, especialmente devido ao aumento de problemas cardiovasculares associados aos implantes.
Em agosto, as entidades propuseram uma regulamentação à Anvisa. O documento, que conta atualmente com o apoio de 30 organizações médicas, pede a proibição total da fabricação, importação, manipulação, comercialização e propaganda de medicamentos hormonais em formatos, doses ou vias de administração não aprovadas pela agência. Assim, as entidades defendem que, se um medicamento é aprovado para uso oral, por exemplo, não deve ser permitido em outra forma de administração.
Outro documento apresentado à Anvisa traz um levantamento de médicos que promovem ativamente o uso do “chip da beleza” em suas redes sociais, muitos dos quais se autodenominam especialistas em “hormonologia”, uma formação não reconhecida pelo Conselho Federal de Medicina (CFM). Alguns desses profissionais oferecem cursos específicos sobre os implantes, prometendo “resultados clínicos e lucros” aos participantes.
O levantamento também incluiu farmácias de manipulação que produzem os dispositivos, que são vendidos posteriormente por médicos a seus pacientes por preços que variam entre R$ 4 mil e R$ 10 mil. Algumas dessas farmácias disponibilizam formulários para que indivíduos se voluntariem como cobaias em treinamentos para a colocação dos “chips”.
Regulamentação
O endocrinologista Clayton Macedo, presidente do Departamento de Endocrinologia e Metabologia da SBEM, ressalta que a intenção não é proibir as substâncias, já que existem situações em que seu uso é legítimo. A testosterona, por exemplo, é indicada para tratar homens com deficiência comprovada desse hormônio, para transexuais masculinos e para o transtorno do desejo sexual hipoativo. “Estamos pedindo o óbvio: que aquilo que não tem regulamentação seja proibido. Os dados mostram que os riscos são enormes e os benefícios, questionáveis. E as pessoas estão pagando caro, tanto com a saúde quanto com o dinheiro”, afirmou Macedo.
Do ponto de vista da regulamentação, o ex-presidente da Anvisa, Dirceu Barbano, afirma que há brechas, já que, desde que exista prescrição médica, não há nada que impeça farmácias de realizarem a manipulação. Contudo, do ponto de vista científico, os problemas existem. “Os médicos utilizam da sua autoridade para prescrever, mas do ponto de vista científico, eles não deveriam. Há uma prática equivocada, tanto deles quanto das farmácias que manipulam, em aceitar formulações que não têm racionalidade e aprovação”, declarou.
Quanto à produção dos implantes pelas farmácias, Barbano expressa preocupação com a fabricação em grande escala. Imagens publicadas nas redes sociais dessas empresas mostram potes repletos de frascos com substâncias utilizadas nos “chips”, sugerindo que há casos em que as farmácias operam como indústrias, fornecendo produtos pré-prontos. “Isso viola um princípio fundamental: farmácias de manipulação devem preparar os produtos de forma individualizada, para atender um paciente específico. Além disso, o uso de ‘cobaias’ não é só tecnicamente condenável, como eticamente também.”
Segundo Macedo, que é coordenador da plataforma VIGICOM – Hormônios, o primeiro contato das sociedades médicas com a Anvisa sobre o tema ocorreu em dezembro do ano passado. Ele afirma que a agência se comprometeu a dar celeridade ao processo, mas os retornos até o momento têm sido vagos e protocolares. Como alternativa, as sociedades médicas estão se organizando para ingressar com uma ação civil pública, na qual solicitarão a suspensão cautelar dos implantes.
Questionada pelo Estadão, a Anvisa afirmou que vem realizando reuniões com associações médicas sobre o tema e que “trata-se de questão relevante e que está em análise pelas áreas técnicas da Agência”. O órgão também destacou que, desde que os implantes passaram a ser utilizados no Brasil, nenhum pedido de autorização para realização de ensaio clínico foi solicitado.
O Ministério da Saúde, por sua vez, destacou que a Anvisa, “que tem por finalidade institucional promover a proteção da saúde da população, esclarece que os implantes hormonais, com exceção do etonogestrel (Implanon), aprovado como anticoncepcional, não são autorizados”.
*A repórter viajou a convite da Sociedade Brasileira de Cardiologia