O dia começa bem cedo no Homi Danchi, na cidade de Toyota, província de Aichi, a 350 km a oeste da capital do Japão, Tóquio. O conjunto habitacional com milhares de moradores tem mais estrangeiros do que nacionais. Ainda de madrugada, centenas de brasileiros se preparam para encarar mais um turno de trabalho na forte indústria automotiva da região, que começa por volta das 6h.
Com a queda da população japonesa, as fábricas do Japão dependem cada vez mais de trabalhadores de outros países. A escassez de mão de obra já faz com que tenham dificuldade para atender à demanda. Para comprar um carro novo é preciso reservar. Dependendo do modelo, o interessado só consegue fechar o negócio depois de um ano.
O aumento de trabalhadores de outros países para preencher as vagas deixadas pelos japoneses no mercado de trabalho é a única solução possível neste momento. O índice de oferta de novos empregos de janeiro revela que existe, em média, apenas um candidato para cada dois empregos criados. Para uma pessoa em busca de trabalho, são 3,17 vagas de motoristas, 5,6 postos de cuidadores de idosos e 11,2 empregos na construção civil.
Como a presença de imigrantes vai aumentar, o convívio multicultural do Homi Danchi projeta o futuro de um Japão adaptado para receber cada vez mais pessoas e costumes de fora. A economia de alguns bairros da cidade, sede da montadora Toyota, depende das famílias dos cerca de 5 mil brasileiros do conjunto habitacional, não apenas como operários de fábricas, mas também como consumidores que sustentam serviços básicos como escolas e transportes públicos.
O residencial, construído na década de 1970 para trabalhadores da indústria de autopeças, é praticamente uma cidade à parte. Os administradores não revelam o número de moradores, mas comerciantes, organizações sem fins lucrativos e voluntários estimam que 9 mil pessoas morem no Homi Danchi. Desse total, 70% seriam brasileiros e 20% japoneses. Outras nacionalidades sul-americanas e asiáticas representariam os 10% restantes.
Os estragos causados pela queda da população são visíveis no interior do país. Dados do Ministério da Educação revelam que a falta de alunos forçou, em média, o fechamento de 476 escolas públicas dos ensinos fundamental e básico, por ano, entre 2002 e 2020. O bairro onde se localiza o Homi Danchi é bastante popular entre as famílias brasileiras, o que ajuda a garantir o funcionamento de duas instituições próximas que recebem cerca de 4 mil estrangeiros para os seis primeiros anos da escolaridade japonesa.
Imigrantes permitem que segmentos de mercado ameaçados pela falta de público continuem a existir
Na Escola Municipal Higashi Homi, quase metade dos alunos são brasileiros. Como a localidade não oferece escola a partir do ensino médio, crianças e adolescentes recorrem ao transporte público para continuar os estudos. Isso também fomenta as companhias de ônibus. Nas áreas mais afastadas do país, a falta de passageiros e também de motoristas resultou na eliminação de uma média anual de mais de 1 mil km em rotas de ônibus entre 2010 e 2018.
Economistas alertam para o risco de segmentos significativos do mercado simplesmente desaparecerem. Empresas de pequeno e médio porte administradas por idosos sem filhos estão fechando as portas por não terem para quem deixar o negócio. Se a taxa de natalidade continuar a cair, o consumo de produtos e serviços que atendem, por exemplo, às crianças de 0 a 6 anos deixará de existir. Um mercado que movimenta bilhões de dólares sumirá e sobrará somente um rastro de falências e desemprego. É uma realidade que não pode ser descartada.
O Ministério da Saúde e do Bem-Estar Social informou no fim de fevereiro que o número de nascimentos recuou pelo oitavo ano consecutivo em 2023. O total de 758.631 bebês representou uma queda de 5,1%. Como o registro de casamentos caiu 5,9%, ficando abaixo do patamar de meio milhão de matrimônios pela primeira vez em 90 anos, espera-se uma retração ainda maior de nascimentos em 2024.
Os jovens japoneses estão preferindo permanecer solteiros ou optando por não ter filhos devido aos altos custos. Mulheres que priorizam a carreira e não possuem parceiros buscam serviços de congelamento de óvulos, que custam cerca de US$ 6 mil. O governo metropolitano de Tóquio anunciou ajuda de US$ 2 mil para as interessadas no processo. Apesar dos esforços, existe a certeza de que o país dificilmente voltará a registrar o nascimento de mais de 2 milhões de bebês como em alguns anos do pós-guerra até a década de 1970.
As mortes aumentaram pelo terceiro ano consecutivo e atingiram o recorde de 1,59 milhão. O saldo negativo entre os que nasceram e morreram foi de 831.872, a maior retração populacional, em termos gerais. A diferença não para de crescer há 17 anos. A queda do número de habitantes foi amenizada pela chegada de estrangeiros. Segundo dados do Ministério dos Assuntos Internos e das Comunicações, a população do país encolheu 511 mil habitantes, totalizando 124,3 milhões, em 2023.
A região metropolitana da capital ainda tem conseguido registrar crescimento populacional com a ajuda de imigrantes, que foram responsáveis por quase 70% do aumento de habitantes em algumas cidades da grande Tóquio, entre os anos de 2016 e 2018, antes da pandemia. No mesmo período, na província de Aichi, que concentra muitos brasileiros, os estrangeiros responderam por 79,6% do aumento da população.
De acordo com o diretor-gerente do Centro de Intercâmbio Cultural do Japão (JCIE), Toshihiro Menju, a sociedade japonesa não vai funcionar sem a presença de estrangeiros. A tendência de queda da taxa de natalidade deve se manter porque a população de mulheres na faixa de idade para formar família e criar filhos vai cair ainda mais nos próximos 10, 20 anos. No sentido contrário, o número de imigrantes vem aumentando de forma consistente mesmo sem um programa oficial do governo nacional.
Menju, que há anos ressalta a importância da integração dos trabalhadores estrangeiros à sociedade japonesa, afirma que a falta de uma política de imigração oficial é uma das principais falhas do governo. Os municípios que desejam receber mais trabalhadores de fora não podem implementar medidas sem um posicionamento concreto da administração central.
Homi Danchi projeta o futuro de um Japão adaptado para receber cada vez mais pessoas de fora
Algumas iniciativas são positivas, como a obrigação de empresas e administrações regionais oferecerem aulas de idioma japonês, que começou em novembro de 2022. Mas ele acredita que ainda é pouco e que o foco não deveria se limitar ao trabalhador, mas também incluir crianças e idosos.
Em entrevista ao Valor, Menju ressalta que o Japão precisa acolher os estrangeiros como imigrantes de fato e não como dekasseguis (trabalhadores temporários que deixam suas famílias para buscar emprego em outras localidades durante curto período do ano) sob a condição de que vão se estabelecer no país, porque a situação de falta de mão de obra causada pela queda da população é um problema permanente.
Uma pesquisa do JCIE, coordenada por Menju, revela que os debates relacionados a projetos de imigração estão paralisados no Parlamento há mais de uma década. A necessidade de mão de obra estrangeira está incluída nas diretrizes para o Japão do século XXI apresentadas pelo gabinete do primeiro-ministro, em 1999. As conversas chegaram a incluir o direito de voto dos imigrantes, mas caíram no esquecimento devido à tensão causada por disputas territoriais com a China e a Coreia do Sul, por volta dos anos 2010. O Parlamento pisou no freio com o temor de interferência externa na política japonesa.
Os cerca de 790 mil chineses e 410 mil sul-coreanos que vivem no Japão seriam o suficiente para eleger vários políticos para as câmaras nacional, provinciais e municipais. De acordo com os últimos dados divulgados pela Agência de Imigração, o número de residentes estrangeiros atingiu o recorde de 3,2 milhões em junho do ano passado. O Brasil, com 210 mil pessoas, tem a quinta maior comunidade, atrás da China, Vietnã, Coreia do Sul e Filipinas.
De acordo com Paulo Okochi, 60 anos, da agência de empregos San3, muitos brasileiros desejam vir ao Japão, mas encontram dificuldades para obter o visto de trabalho. O governo impõe restrições para descendentes de japoneses da quarta geração. Precisa ter certo domínio do idioma, o período máximo de permanência é de cinco anos e não pode trazer a família. Em 2022, segundo fontes diplomáticas, apenas 128 brasileiros conseguiram o visto dentro dessa categoria.
Enquanto o debate sobre imigração não avança, a falta de trabalhadores sobrecarregou os que estão empregados com horas extras intermináveis ao ponto de resultar em acidentes de trabalho fatais no setor de construção civil e até suicídio em agência de publicidade. As péssimas condições de trabalho forçaram mudanças na lei trabalhista que limita as horas extras a partir deste mês. E isso aumentou ainda mais a necessidade de novos trabalhadores no mercado. A carga horária dos que estão empregados foi reduzida e mais contratações são necessárias para manter a produção.
A logística promete ser um grande desafio. Motoristas de caminhão podem fazer, em média, um máximo de três horas extras por dia. Algumas empresas reservam vagões no trem-bala japonês para distribuir os produtos. Governos regionais aprovaram legislação para permitir que táxis também passem a atuar no transporte de cargas.
Mas as companhias de táxi não têm o número suficiente de motoristas. A Hinomaru Koutsu, uma das maiores do ramo na capital, passou a contratar mão de obra de outros países para trabalhar durante a Olimpíada de Tóquio 2020. Atualmente conta com 100 estrangeiros, que correspondem a 5% do quadro de motoristas. E pretende continuar contratando de três a cinco imigrantes por mês.
Nas grandes cidades, jovens estudantes que vêm ao país para estudar o idioma japonês são responsáveis por boa parte da força de trabalho de entregas de comida e de itens de primeira necessidade. De acordo com Menju, empresas e sindicatos de entregadores sofrem picos de crise nas datas dos exames de proficiência da língua. A prova acontece duas vezes por ano e nesses períodos não há número suficiente de entregadores porque muitos estão concentrados nos estudos.
As lojas de conveniência também dependem dos estudantes, inclusive japoneses, para funcionar. Alguns estabelecimentos que ficavam abertos 24 horas por dia passaram a não atender mais durante as madrugadas por falta de mão de obra. A maior rede japonesa, Seven-Eleven, planeja implantar lojas sem atendentes a partir do segundo trimestre. O consumidor vai usar o próprio celular para escanear o código de barras dos produtos e pagar com cartão de crédito, sem a necessidade de passar pelo caixa. O modelo de negócios, que requer apenas um funcionário para controlar o estoque, possibilitará a abertura de novas lojas em locais considerados até então inviáveis, como fábricas, condomínios residenciais e escolas.
As concorrentes da Seven-Eleven também buscam alternativas para expandir os negócios com menos funcionários. A rede Lawson introduziu telas com avatares para que um funcionário possa atender a várias lojas através de um terminal. A FamilyMart realiza testes com um sistema de pagamento automático. A Ministop desenvolveu lojas de 3 m2 que podem funcionar sozinhas. Não é fácil se adaptar às novidades. Clientes pouco familiarizados com smartphones e cartões de fidelidade demoram minutos para realizar uma compra.
A introdução da automação, que aumenta a produtividade por funcionário, já resulta em lucros que permitem melhores salários no setor de restaurantes. A rede de restaurantes Skylark, por exemplo, conseguiu se reerguer dos prejuízos causados pela pandemia de covid-19. Com cerca de 3 mil restaurantes e 90 mil funcionários, montou projeto de introdução de 3 mil robôs em cerca de 2.100 lojas. A empresa ainda não divulgou o resultado financeiro, mas já anunciou aumento salarial de 6% para parte dos empregados.
A iniciativa da Skylark indica que os consumidores estão se familiarizando com as novas tecnologias adotadas pelo setor de restaurantes japonês. O uso de tablets para realizar pedidos e robôs para transportar comida até os clientes é cada vez mais comuns nos restaurantes do país.
É algo que causa estranhamento a quem não está acostumado. O mundo ainda guarda na memória os problemas causados pela pandemia de covid-19 e fazer o pedido numa tela de computador utilizada por várias pessoas é pouco higiênico. A música tocada pelos robôs durante o transporte dos pratos pode não agradar e causar incômodo durante as refeições. A imagem de uma máquina trazendo os pedidos também não é animadora. É quase como receber um prato frio.
O setor de serviços segue a tendência de automação que já se encontra num estágio sem retorno na indústria. Na Takagi Kogyo, uma importante agência que terceiriza mão de obra brasileira no Japão, um cliente adotou a automação e reduziu, em pouco mais de uma década, o número de funcionários de 7.200 para 3.200. O trabalho humano, que era responsável por 60% do processo de produção, representa agora 40% das operações
A solda e o torno funcionavam com 30 pessoas, mas agora podem ser tocados por apenas 3. Antigamente a calibração das máquinas era feita manualmente. Mesmo o torno digital precisava de alguém para ajustá-lo. Depois outros conferiam e faziam a limpeza. Hoje, o torno é todo calibrado e funciona com memória. Um programa mostra as opções de calibração, localização dos produtos e a situação das reposições, afirma Admilson Santos, 48 anos, coordenador geral de estrangeiros da empreiteira.
A automação da indústria automotiva é positiva para as famílias dos trabalhadores do conjunto habitacional Homi Danchi. As fábricas instalam robôs e conseguem expandir a produção com o mesmo número de funcionários. O lucro das empresas aumenta e os salários sobem na sequência. Reinaldo Cárceres, 62 anos, natural de Campo Grande, Mato Grosso do Sul, está no Japão desde 2001 e sente de perto os benefícios. Ele trabalha há 11 anos na linha de produção de trilhos para bancos de carros numa fábrica que conta com 900 funcionários e opera 24 horas por dia.
Em sua seção, a automação resultou no corte de 80% do trabalho manual. Mesmo assim, a empresa conseguiu evitar demissões. A fábrica investiu em robôs para atender à crescente demanda e os que ficaram sem função foram realocados para serviços que não são executados pelas máquinas. A produtividade por trabalhador deu um salto. O salário começou a subir pouco antes da pandemia e acumula, desde então, ganho de 20%.
Cárceres é o exemplo de um operário valorizado pela automação, com ofícios mais tranquilos e menos perigosos, que o empregador deseja ver nas fábricas mesmo com mais de 60 anos. Ele pretende trabalhar por pelo menos mais três anos, quando completará 65 e poderá solicitar a aposentadoria no Japão. Ressalta que gostaria de seguir até a idade máxima permitida de 70 anos. E isso é possível porque as fábricas encontram dificuldades para contratar jovens, que preferem inclusive sair do Japão em busca de salários mais atraentes. Um assistente de cozinha japonesa, por exemplo, recebe três vezes mais nos Estados Unidos do que no Japão.
Cárceres leva uma vida confortável. A esposa também trabalha e o filho de 13 anos é bilíngue, fala português em casa e japonês na escola. A família possui dois carros e viaja nos feriados prolongados para a praia ou estações de esqui. No fim de semana, gosta de visitar templos. Lamenta ter perdido uma viagem marcada para a Tailândia por causa da pandemia.
O sucesso dele retrata o presente dos brasileiros no Homi Danchi, que vivem em harmonia com os japoneses. Ainda acontecem pequenos problemas, mas nada que lembre as discussões tensas ocorridas na década de 1990, causadas por diferenças culturais. Nas artes, essa mistura de costumes e dificuldades enfrentadas por imigrantes inspirou o longa “Família”, filmado no conjunto habitacional e lançado no Japão no ano passado. O filme conta com a atuação do renomado ator Koji Yakusho, visto recentemente em “Dias Perfeitos”, e de jovens brasileiros que moram na região.
Bairros dominados por imigrantes como Homi Danchi podem ser um celeiro de profissionais para o Japão, formando uma geração multicultural, poliglota e aberta a novas ideias – algo de que o país tanto precisa.