O círculo de pedras e metal, no centro do Mercado Público de Porto Alegre, tem assentado o Bará. Um orixá de religiões de matriz africana que abre caminhos e está ligado à fartura, em uma das versões contadas, ele teria sido colocado ali pelos escravizados que construíram o prédio.
A poucos metros dali, na porta do Largo Glênio Peres, uma placa de bronze lembra a marca a que chegou a água na enchente de 1941, que deixou a capital gaúcha inundada por mais de um mês – 1,10 metro.
“Eu não acreditava. Acreditei num lado místico, porque 1941 aconteceu nos mesmos dias de maio, então, pensava que não superaria 1,30 metro. Chegou a quase 2 metros”, diz Ronaldo Pinto Gomes, gestor do Mercado e quem passou o recado no megafone.
Um dos cartões-postais de Porto Alegre, mercado público mais antigo do país, aberto desde 1869, o prédio que passou por incêndios e outras enchentes, está há uma semana tomado pelas águas que invadiram parte da capital gaúcha.
Por volta das 6h, o presidente da Associação de Permissionários, Rafael Sartori, checou um bueiro e a água chegava a 10 centímetros, medida dentro do normal. Pela metade da manhã, ela já havia subido 40 centímetros mais. Ainda assim, diz ele, ninguém imaginava que chegaria a cerca de 1,80 metro perto do centro.
“Eu subi minhas balanças, custa R$ 10 mil cada, tenho sete e subi na altura de 1,60 metro porque pensei: jamais, pode ser a pior catástrofe, não pode passar disso. E provavelmente vou perder as sete, por desacreditar no pior cenário”, diz ele, que tem a Casa de Carnes Santo Ângelo. “No andar térreo, todo mundo perdeu tudo. A gente vai ter que recomeçar do zero”.
Por ali, perto de terminais de ônibus, costumam circular cerca de 30 mil pessoas por dia e girar um faturamento de cerca de R$ 300 mil, diz Sartori. A estimativa é que apenas os peixeiros tenham perdido de uma a duas toneladas de produto. A maioria das lojas deve ter prejuízo ainda com mobiliários, máquinas, refrigeradores e computadores.
O próprio Mercado havia trocado recentemente a casa de bombas, e colocado escada-rolante e elevadores novos. O segundo piso reabriu apenas em 2022, nove anos depois do incêndio em toda a parte superior que comoveu a cidade.
“A gente vem de vários baques, teve pandemia, greve dos caminhoneiros, agora essa enchente. Não sei quanto tempo até conseguirmos abrir novamente – com essa chuva, eu acredito que para abrir e limpar ainda deve levar uns 30 dias. Só o prejuízo de estar fechado, em torno de R$ 600 mil, fora a mercadoria”, diz Marcos Agiova.
Ele toca a Flora Hananoka com os dois irmãos, no ponto que é da família há 40 anos. Pela tradição do Mercado, há uma loja de artigos religiosos como a dele em cada uma das quatro portas principais, sempre à esquerda de quem entra e à direita de quem sai.
Comerciantes contam que a água entrou no Mercado, quase simultaneamente à invasão na avenida Mauá, pelos bueiros. Além disso, pela localização do edifício, ela trouxe o esgoto da região central. Além dos estragos da água e umidade, o local conhecido pelas bancas de alimentos e restaurantes está tomado por uma água contaminada.
Sartori e ex-presidentes da associação fizeram um grupo para discutir as fases de recuperação, quando a água baixar. Segundo ele, a primeira, quando a água chegar a 30 centímetros, é liberar um dia para cada segmento entrar no local e fazer a limpeza de sua banca, com um caminhão refrigerado ajudando no descarte de produtos.
João Melo, dono do Gambrinus, o restaurante mais antigo do Rio Grande do Sul, fundado em 1889, ano da proclamação da República, diz que ainda não consegue calcular os prejuízos. Numa conta preliminar, considerando estrutura e faturamento, ele estima R$ 1 milhão em perdas.
“Estou repensando o negócio, porque também não temos recursos. A gente vem da pandemia, que esgotou o caixa da empresa, nos endividamos para poder manter todos os funcionários e não demitir ninguém. O que vamos buscar é empréstimo, ver como o governo pode ajudar. Voltar, talvez, com cardápio reduzido, espaço reduzido, temos que esperar para ver”, diz ele.
Diferente de outros desastres no Mercado, agora os prejuízos também são vividos fora dele. Melo segue sem água em casa, e começou uma campanha para arrecadar recursos para funcionários que perderam tudo nas enchentes. Um deles teve a casa inteiramente destruída pela água, na Ilha da Pintada.
A associação estima que entre 30% e 40% dos cerca de mil funcionários, moradores de Canoas, Eldorado do Sul e das ilhas da capital, tiveram que sair de casa. Três dos permissionários estão com casas alagadas, um deles vive em um barco desde a semana passada.
Adriana Kauer, ex-presidente da associação e dona da Comercial Martini, está abrigando duas famílias que tiveram casas alagadas. Ela tem loja no Mercado há 38 anos. E abriu as portas ali depois de ter crescido dentro da loja do pai, também no Mercado.
“O Mercado é Porto Alegre em proporção menor. O que está acontecendo na cidade, acontece ali. Se a cidade está pujante, o Mercado também está. Se ela está maltratada, ele também está. Ele é reflexo do que Porto Alegre está passando”, diz ela.
Com mais chuvas desde esta sexta-feira (10), não há como prever quando será possível entrar ou voltar a abrir as portas do edifício. Com medo de saques, a associação colocou seguranças armados em barcos para fazer ronda em tempo integral no prédio.
“Dá para definir ele como símbolo de resiliência de Porto Alegre. Ele completa 155 anos este ano, já estávamos pensando na comemoração”, diz Sartori.
“O barulho da chuva está sendo traumatizante, mas posso te dizer que minha certeza de que a gente vai superar é muito forte. O Mercado sobreviveu à água, a incêndios e tenho certeza que a gente vai sair dessa”, afirma Krauer.